Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ O Animal Darwiniano: O Status das Emoções na Teoria da Mente em Charles Darwin André Luis de Lima Carvalho Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz - Casa de Oswaldo Cruz para a obtenção do grau de Mestre ORIENTAÇÃO: Prof. Dr. Ricardo Waizbort Rio de Janeiro, 2005 Aos cães de Charles Darwin, aos chimpanzés de Jane Goodal e a todos os viventes que ao longo da história da ciência têm inspirado homens e mulheres em suas construções, desconstruções e disputas teóricas a respeito do universal e do singular na condição animal e na experiência humana. AGRADECIMENTOS Esse trabalho não seria o mesmo sem a ajuda e o apoio de muitas pessoas, e a elas faço aqui meus agradecimentos. Quero agradecer a todos os colegas do curso de mestrado com quem compartilhei um ambiente de camaradagem e apoio mútuo, com destaque para as colegas Maria Rosa e Malu, com as quais troquei impressões e dicas que me ajudaram a solucionar problemas os mais diversos. Também quero declarar minha gratidão a todos os professores da Casa de Oswaldo Cruz com quem tive a oportunidade de aprender como fazer história das ciências. Aos professores Robert Wegner e Jaime Benchimol e, em especial, aos professores Flávio Edler, Magali Romero Sá e Lorelai Brilhante Kury por sua generosa disponibilidade de tempo e de recursos. Graças a eles tive acesso a fontes bibliográficas que eu desconhecia e que enriqueceram meu trabalho, além de receber algumas orientações que me ajudaram a redefinir rotas e rumos. Faço um agradecimento todo especial a Marília, minha companheira, minha mulher. Sua presença balsâmica me proporcionou todo apoio, incentivo e compreensão necessários, tanto na dimensão emocional quanto na intelectual, para prosseguir em meio aos prazeres, mas também aos dissabores e renúncias necessários à edificação desse trabalho. Por fim, agradeço com toda minha alma ao meu orientador Ricardo Waizbort. Por sua imensa disponibilidade, dedicação, interesse, encorajamento e diálogo, que não sucumbiram nem mesmo aos problemas de saúde que atravessou no decorrer desses dois anos. Embora tenha demonstrado sempre grande respeito por meu estilo e autonomia, sua supervisão nas inúmeras formulações e reformulações do texto são em grande parte responsáveis pelo que esse trabalho tiver de melhor, sendo somente minhas as falhas e deficiências. Em meio a tantos nomes e situações, é possível e até mesmo provável que eu tenha inadvertidamente negligenciado os agradecimentos a uma ou outra pessoa. A estes, minhas humildes e sinceras desculpas. Rio de Janeiro, 03 de maio de 2005 André Luis de Lima Carvalho. Aquele que compreender o babuíno terá feito mais pela metafísica do que Locke . Charles Darwin, pensamento registrado em seu M Notebbok, 1838 RESUMO O presente trabalho analisa o status das emoções animais na edificação de uma teoria da mente em Charles Darwin, tendo como principais fontes primárias as obras The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (DARWIN, 1998a [1871]) e The Expression of the Emotions in Man and Animals (DARWIN, 1998b [1872]). Defendo que as emoções são um atributo de importância crucial no estabelecimento de uma teoria darwiniana da mente. Dentre os vários componentes da teoria da evolução de Charles Darwin, destaco a noção de “origem comum” (common descent) como a mais diretamente ligada à questão das emoções animais, pois esse conceito fundamenta a tese de uma continuidade mental entre animais e humanos. Chamo atenção para o fato de que há uma tendência na literatura de confundir emoções com expressões emocionais, o que tem reforçado certos equívocos quanto ao papel das emoções na teoria darwiniana. Um desses equívocos diz respeito às próprias fontes, e contrariando a literatura especializada defendo que na verdade as emoções enquanto estados mentais são analisadas por Darwin principalmente em dois capítulos do Descent, e não no Expression, Como unidade de análise para um estudo de caso adotei o que chamo de cão de Darwin. Com essa denominação refiro-me ao cão conforme descrito na obra e pelo olhar de Charles Darwin. Ao fim dessa análise de caso e dessa dissertação espero que o cão de Darwin tenha me auxliado a apresentar ao leitor o animal darwiniano como um animal dotado não apenas de instintos e racionalidade, mas também de uma rica vida interior, na qual as emoções desempenham um papel fundamental. ABSTRACT This work evaluates the status of animal emotions in the construction of a darwiinian theory of mind. The main books analyzed were The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (Darwin, 1998a [1871]) and The Expression of the Emotions in Man and Animals (Darwin, 1998b [1872]). I state that emotions are a very important aspect of the darwinian theory of mind. Among the several components of Charles Darwin’s evolutionary theory I stress the notion of common descent as the most directly related to the matter of animal emotions, since this concept settles the foundations that support the notion of mental continuity between animals and men. I stress the fact that there is a bias in the literature to equate emotions with emotional expressions. This tendency has led to certain misunderstandings as to the role of emotions in darwinian theory. One of those misunderstantings is related to the sources themselves, and I state here that emotions as subjective mental states are in fact discussed by Darwin mainly in two chapters of the Descent, not in Expression. I took Darwin’s dog as an unity of analysis for a case study based in the type specimen method (Hull,1985). By “Darwin’s dog” I mean the dog as described in the work and through the eyes of Charles Darwin.At the end of this case study and of this thesis I hope that Darwin’s dog has helped me to introduce the reader to the darwinian animal as an animal endowed not only with instincts and rationality, but also with a rich inner life, in which emotions play a fundamental role. SUMÁRIO SUMÁRIO INTRODUÇÃO MACACO OU ANJO? ................................................................................................. 1 MENTE E SINGULARIDADE HUMANA NO SÉCULO XIX: O IMPACTO DO DARWINISMO ............................................................................................................... 2 A QUESTÃO DA MENTE ANIMAL E HUMANA NA OBRA DE DARWIN ..................... 3 ATRIBUTOS DA MENTE EM DARWIN E A LACUNA EMOCIONAL ........................... 6 O ANIMAL DARWINIANO: O CÃO COMO PORTADOR DE EMOÇÕES .................. 12 TESES DEFENDIDAS ................................................................................................ 13 TERMINOLOGIA, ELEMENTOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS ................... 14 CAPÍTULO 1 : A árvore da vida e o florescer da mente SOBRE O NASCIMENTO DO ORIGIN ....................................................................... 17 O ORIGIN - DESPONTAR DO DARWINISMO E A TEORIA DA ORIGEM COMUM ............ ..........................................................................................................................18 A ORIGEM COMUM COMO PRINCÍPIO UNIFICADOR ..............................................21 A ÁRVORE DA VIDA E O FLORESCER DA MENTE ................................................. 22 A ‘PRIMEIRA REVOLUÇÃO’ E O DESTRONAMENTO DO HOMEM ........................ 24 O HOMEM NO ORIGIN: A ÁRVORE DA VIDA E A “CATÁSTROFE MENTAL’ ......... 26 O HOMEM EM FOCO ................................................................................................. 28 DARWINISMO EM EXPANSÃO .................................................................................. 31 DUPLA NATUREZA: A MENTE HUMANA COMO ÚLTIMA TRINCHEIRA ................ 35 CAPÍTULO 2: A Teoria da Mente em Charles Darwin e a Questão das Emoções ESCOLHENDO A PREPOSIÇÃO ............................................................................... 41 O DESCENT: NASCIMENTO E CIRCUNSTÂNCIAS ................................................. 42 O DESCENT: ESTRUTURA E ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS ........................ 46 O EXPRESSION: NASCIMENTO E CIRCUNSTÂNCIAS ........................................... 51 O EXPRESSION: INTERLOCUTORES E ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS ...... 53 COMPONENTES DA MENTE EM DARWIN ............................................................... 56 MENTE E COMPORTAMENTO EM DARWIN: INSTINTO ......................................... 57 MENTE E COMPORTAMENTO EM DARWIN: RAZÃO E INTELIGÊNCIA ................ 59 MENTE E COMPORTAMENTO EM DARWIN: MORAL ............................................. 60 VIDA INTERIOR NO SÉCULO XIX: UM TEMPO PARA AS EMOÇÕES .................... 64 DELIMITANDO AS EMOÇÕES NA OBRA DE DARWIN ............................................ 67 AS EMOÇÕES E SUA RELAÇÃO COM INSTINTO, RAZÃO E MORAL: A SIMPATIA ...................................................................................................................................... 70 EMOÇÕES ANIMAIS E CONTINUIDADE MENTAL ................................................... 75 EMOÇÕES: SELEÇÃO NATURAL, COMUNICAÇÃO E FUNÇÃO BIOLÓGICA ........ 78 EXPRESSÕES EMOCIONAIS E EMOÇÕES COMO CONTEÚDOS MENTAIS ........ 83 RESUMINDO E CONCLUINDO .................................................................................. 86 CAPÍTULO 3: Animal Darwiniano: o cão de Darwin APRESENTANDO O CÃO DE DARWIN ..................................................................... 87 O MÉTODO ESPÉCIME-TIPO .................................................................................... 90 A RELAÇÃO ENTRE HOMENS E CÃES: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA ........... 92 EMOÇÕES E O “EU” ANIMAL .................................................................................... 94 INDIVIDUALIDADE E VARIABILIDADE MENTAL NO ANIMAL DARWINIANO ......... 95 ANIMAIS PRIVILEGIADOS ......................................................................................... 97 O CÃO NO IMAGINÁRIO INGLÊS: DO PERÍODO MODERNO À ERA VITORIANA ...................................................................................................................................... 98 DARWIN E SEUS CÃES ............................................................................................. 99 O CÃO DE DARWIN COMO EXEMPLAR DA INTELIGÊNCIA SUPERIOR CIVILIZADA .................................................................................................................................... 101 O CÃO DE DARWIN - ATRIBUTOS MENTAIS GERAIS: BREVE ANÁLISE ............ 103 EMOÇÃO, INDIVIDUALIDADE E SUBJETIVIDADE NO CÃO DE DARWIN .......... 104 UM ANIMAL QUE AMA ............................................................................................. 106 OUTROS ANIMAIS ................................................................................................... 109 RESUMINDO ............................................................................................................. 111 CONCLUSÃO RESUMO DOS PROBLEMAS DISCUTIDOS E TESES DEFENDIDAS ................... 114 DARWINISMO E EMOÇÕES: DESDOBRAMENTOS POSTERIORES E BREVE PANORAMA ATUAL ................................................................................................ 120 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................123 APÊNDICES .............................................................................................................. 128 INTRODUÇÃO MACACO OU ANJO? Em novembro de 1864, Benjamin Disraeli, novelista e então líder do Partido Conservador da Inglaterra, falou a um público de clérigos. Disraeli era o palestrante convidado da Conferência Diocesana de Oxford. Das palavras que pronunciou naquele dia algumas poucas ficaram para a posteridade e exerceram um impacto sobre os estudos que tratam da história do darwinismo (BOWLER, 1989: BROWNE, 2003; ELLEGARD, 1990). “É o homem um macaco ou um anjo?” - foi a questão que formulou perante uma platéia excitada. “Eu estou do lado dos anjos”1 - foi a resposta que deu à própria pergunta. 1 “Is man an ape or an angel? I am on the side of the angels”. Citado em Browne, 2003, p. 251 12 O ano de 1864 era marcado por uma grande agitação na vida política, social e intelectual da Inglaterra. Velhos valores vinham sendo sacudidos em todas as frentes, e talvez a mais importante tenha sido a que dizia respeito à questão teológica (BROWNE, 2003). Na Igreja Anglicana a Broad Church - corrente de tradição mais liberal - via-se em conflito com várias outras correntes quanto a diversos pontos da doutrina. Esses intensos e constantes atritos estavam a causar a evasão de dissidentes para a Igreja Católica, para o Partido Liberal ou mesmo a uma espécie de conversão para os ideais de uma ciência cética. A transformação estava na ordem do dia. Fora nesse clima borbulhante de desafios aos valores vigentes e de discussões teológicas tumultuadas que havia emergido, cinco anos antes, em 1859, The :Origin of Species (DARWIN, 2002 [1859]), livro que inauguraria o programa de pesquisa darwinista. E havia sido no ano anterior que Charles Lyell e Thomas Henry Huxley - amigos pessoais e colaboradores de Charles Darwin - haviam lançado, respectivamente, The Antiquity of Man e Man’s Place in Nature, obras dedicadas aberta e especificamente ao tema da origem do homem e sua posição na ordem natural. A pergunta de Disraeli sintetizava com maestria a polarização ideológica que envolvia tantos atores e autores da Inglaterra vitoriana. Teria o homem, como os anjos, uma origem divina e direta, como afirmavam as Escrituras? Ou a razão estaria com esses novos evolucionistas - cientistas que defendiam para o homem uma origem bem menos nobre: uma origem animal, tendo como parentes mais próximos os grandes primatas do Velho Mundo? A escolha, pelo político e ensaísta britânico, dos anjos como opostos aos macacos sugere outras questões interessantes. Afinal, um anjo é uma forma 13 desmaterializada de vida, um ser exclusivamente espiritual. Alma sem carne. Mente sem corpo. E o macaco representava - como ainda freqüentemente é o caso hoje - uma caricatura, um arremedo do homem (MORRIS, D. & MORRIS, R., 1968). Uma criatura bestial desprovida de razão em seus atos. Carne sem alma. Corpo sem mente, ou de mente distorcida. Quando Disraeli se posicionava “do lado dos anjos” ele enfatizava a dimensão espiritual do homem. Dessa maneira reafirmava a singularidade humana pondo em foco os atributos dos anjos e das almas. E dentre os atributos de uma entidade espiritual certamente um dos que se destacam é a posse de uma mente elevada. MENTE E SINGULARIDADE HUMANA NO SÉCULO XIX: O IMPACTO DO DARWINISMO O conceito de mente é, ainda hoje, tão complexo, que a maioria dos autores que abordam o tema evita uma definição precisa, mesmo quando se trata de obras especializadas no assunto (DENNET,1997; GREGORY, 1987). Na primeira metade do século XIX a mente já era palco de debates sobre a condição humana. Embora a doutrina de Descartes não fosse tão influente na Inglaterra quanto havia sido na França e em outros países europeus (THOMAS, 2001), ainda assim as correntes hegemônicas da teologia natural defendiam a tese de que a posse de uma mente racional era um dos principais atributos distintivos da singularidade e superioridade humanas perante o mundo natural (ELLEGARD, 1990). Obviamente, não seria senão à custa de debates acalorados e muitas vezes passionais que a mente animal entraria em cena como importante 14 elemento do programa darwinista (BOWLER, 1989; ELLEGARD, 1990). Afinal, o abrangente conceito de mente inclui em suas fronteiras diversos atributos, tais como moralidade, razão e emoções2 (RICHARDS, 1989). Desses atributos mentais, os dois primeiros (moral e razão) eram objetos de acaloradas discussões teológicas, e com freqüência apontados como provas da unicidade humana, da posição privilegiada do homem na ordem natural. Em contraste, nos discursos de Darwin e de alguns de seus aliados era outra a mente que se delineava. Não mais uma Mente sobrenatural a reger a matéria ou uma mente racional como marca da singularidade humana, mas uma mente que emergia da própria matéria viva, do inexorável processo evolutivo ao qual estavam submetidos todos os seres orgânicos (DENNET, 1998). A QUESTÃO DA MENTE ANIMAL E HUMANA NA OBRA DE DARWIN Embora a obra de Charles Darwin mais conhecida e em geral considerada a mais revolucionária (MAYR, 1998) seja The Origin of Species - doravante denominado Origin (DARWIN, 2002 [1859]), publicada em novembro de 1859, nessa obra Darwin mal toca na questão da origem do homem. Cauteloso, Darwin não foi o primeiro nem o segundo darwinista a ousar discutir abertamente a origem do homem do ponto de vista de sua teoria da evolução. Quando decidiu abordar de forma mais direta a questão, o caminho já havia sido aberto em 1863 por The Antiquity of Man, de Charles Lyell, e imediatamente secundado por Man’s Place in Nature, de Thomas Henry Huxley, ambos evolucionistas aliados de Darwin. 2 No século XIX também os instintos se abrigavam, no discurso de muitos autores, dentro das fronteiras da mente (RICHARDS, 1989) 15 Assim, com o terreno já parcialmente preparado, Darwin finalmente publicaria, em 1871, The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (doravante denominado Descent) (DARWIN, 1998a [1871]). Nessa obra aprofundava o tema que deixara apenas insinuado quando da publicação do Origin: a origem do homem e sua participação no processo de evolução biológica. Explicitando desde o início da obra sua intenção de demonstrar que o homem apresenta uma relação de ancestralidade compartilhada com os demais seres vivos, Darwin redigiu vinte e um capítulos. Destes, três (do terceiro ao quinto) foram exclusivamente dedicados a discutir o desenvolvimento de variadas faculdades mentais de um ponto de vista evolutivo. Desses três capítulos, dois (o terceiro e o quarto) diziam respeito especificamente à “comparação dos poderes mentais do homem e dos animais inferiores”. Nesses capítulos a noção de mente animal era afirmada, e suas semelhanças com a mente humana eram defendidas a partir de múltiplas evidências e argumentos que apontavam para a existência de um princípio de continuidade mental. Um dos propósitos do Descent parece ter sido o de dar uma resposta definitiva, um tiro de misericórdia, à linha argumentativa de certos autores - tanto adversários como aliados do programa darwinista. Tais autores cediam à noção de uma origem física em comum entre homem e animais, mas insistiam numa criação em separado da mente humana por intervenção divina (ELLEGARD, 1990)3. Procuravam, com esse malabarismo intelectual, garantir a já tão fragilizada tese da singularidade humana na ordem natural. Daí a 3 No capítulo 1 serão discutidas as classifcações de Ellegard (1990) das posições e reações de outros autores às teorias darwinianas da evolução em geral e da origem do homem em particular. 16 importância da presença, no Descent, de discussões especificamente voltadas para o debate das relações entre a mente animal e a humana. No ano seguinte, 1872, Darwin publicava The Expression of The Emotions in Man and Animals (doravante denominado Expression) (DARWIN, 1998b [1872]), Esse livro fora originalmente concebido como parte do próprio texto do Descent, mas Darwin optou por lançar esse texto em volume independente, tanto por motivo de espaço quanto por julgar mais conveniente separar os assuntos (BROWNE, 1985; RICHARDS, 1989). Praticamente tão volumoso quanto seu predecessor, o Expression é especificamente dedicado ao estudo de expressões faciais e posturas corporais indicativos de diversos estados emocionais nos animais e no homem. Seu propósito principal explicitado é basicamente o mesmo do Descent: demonstrar a existência de uma relação de continuidade decorrente de parentesco, nesse caso entre os comportamentos de expressão emocional animais e humanos, como já anuncia o próprio título do livro. Tendo como principais fontes primárias de referência o Descent e o Expression, pretendo articular no capítulo 1 a teoria da mente animal de Darwin com sua teoria da origem comum, e apresentar o ambiente de idéias no qual Darwin travou seus debates sobre o tema. Como e em que contexto de valores culturais essa mente animal vai se materializando na obra de Darwin? Qual a relação da teoria da mente em Darwin e a tese de uma ancestralidade comum entre os animais e o homem? Quem eram seus interlocutores e quais os argumentos e posições sustentados por estes? ATRIBUTOS DA MENTE EM DARWIN E A LACUNA EMOCIONAL 17 Em artigo publicado numa coletânea de textos sobre a história do darwinismo, Burkhardt (1985) apontava que os pensamentos de Darwin sobre o comportamento permaneciam relativamente inexplorados, e sugeria alguns motivos prováveis para tal fato. O primeiro seria que a maioria dos historiadores do darwinismo se dedicava a estudos sobre o Origin, no qual o comportamento animal não apresenta grande importância. O segundo fator seria o fato de que a despeito da precaução historiográfica contra o whiguismo4, persiste o fato de que os desenvolvimentos contemporâneos de uma ciência estimulam os estudos históricos sobre a mesma. Assim, muitas das teses sustentadas e dos métodos empregados por Darwin nas discussões sobre o comportamento e a mente não se confirmaram ou foram sancionados pela ciência atual. Isso teria gerado certo descaso pela abordagem de Darwin a respeito desses temas. Finalmente, Burkhardt afirma que o estudo do comportamento não era uma parte privilegiada dos estudos de Darwin, uma vez que ainda não existia uma disciplina científica separada para o tema e que Darwin não o tratou como um domínio especializado (BURKHARDT, 1985, p. 327). Entretanto, dois anos depois essa lacuna apontada por Burkhardt foi em grande parte preenchida com a publicação de Darwin and The Emergence of Evolutionary Theories of Mind and Behavior, de Robert Richards, cuja primeira edição foi publicada em 1987. Nessa ampla revisão sobre o papel das teorias da mente e comportamento no programa de pesquisa darwinista, Richards (1989, p. 6) questiona a visão tradicional estabelecida pela maioria dos estudiosos do darwinismo, e afirma que um historiador “adquire uma 4 A expressão ‘interpretação whiguista da história’ foi proposta pelo historiador H. Butterfield como crítica a uma história da ciência na qual a ciência e os cientistas do passado eram julgados à luz do conhecimento moderno (Mayr, 1990, p. 301). 18 perspectiva muito diferente do movimento intelectual [do darwinismo]” caso se volte para “os conjuntos de problemas e soluções apresentadas que formaram a matriz das teorias evolutivas sobre mente e comportamento então emergentes”. Dentro desse novo quadro, explica Richards, os organismos figuram não como meros produtos passivos de suas histórias e ambientes imediatos, mas sim tendo um papel ativo em sua própria transformação. Em outras palavras, afirma que tais autores propunham “em variadas formas, que o comportamento e a mente dirigiam o processo evolutivo” (1989, p. 6). Richards elegeu para sua discussão sobre o papel e desenvolvimento das teorias darwinistas da mente e comportamento três temas: o instinto, a razão e a moral, pois - sustenta o autor - são esses os três aspectos ligados às questões da mente e comportamento que recebem maior destaque na obra de Darwin e seus contemporâneos (RICHARDS, 1989, p. 8). A obra de Richards possui 700 páginas, mais o prefácio. Dessas 700 páginas, 627 são de texto corrido, distribuídas em doze capítulos e dois apêndices. O autor discute à exaustão o papel dos três tópicos por ele escolhidos (instinto, razão e moral) nas teorias de Darwin, Wallace, Spencer5 e outros autores incluidos no programa de pesquisa darwinista. O estudo da mente humana e animal, no entanto, inclui um aspecto importante ao qual o autor não faz mais que uma breve menção: a questão das emoções. No livro de Richards o tema das emoções é abordado apenas em dois momentos. Um deles não diz respeito diretamente a Darwin, mas sim à visão do tema por William James, psicólogo do fim do século XIX. A segunda 5 Também aqui contrariando o discurso histórico vigente, Richards sustenta que Herbert Spencer era - tanto quanto Wallace, Huxley e outros - um autor engajado no programa darwinista. 19 aparição do tema diz respeito à comparação das teorias de Darwin e Charles Bell a respeito da expressão das emoções. Recorrendo ao índice remissivo da obra de Richards, podemos fazer uma breve apreciação comparativa da importância do tema das emoções em relação aos três outros temas anteriormente mencionados como eleitos por esse autor. O termo “emotions” soma oito páginas, apenas cinco das quais dizem respeito a Darwin. Isso significa que de um total de 627 páginas escritas, o autor dedicou menos de 0,8 % à discussão exclusiva das emoções na obra de Charles Darwin. O vocábulo “instinct”, por sua vez, aparece no índice remissivo com 49 referências. Na referência correspondente a Darwin ele soma 86 páginas (13,71 % do total de páginas). A questão da moral é dividida em “moral sense” e “moral theory”, que somam 46 aparições. Aquelas voltadas especificamente para as teses de Darwin sobre moral perfazem um total de 146 páginas (23,28 % do total). Os termos “reason” e “intelligence”, por sua vez, apresentam, somados, 31 referências. Aquelas especificamente destinadas a Charles Darwin totalizam 40 páginas (6, 37 %). Apresento esses dados não com o propósito de um tratamento quantitativo do assunto, mas somente para realçar o contraste na importância atribuída entre o tema das emoções e os demais aspectos da instância da mente em Darwin na obra de Richards. A análise de Richards do papel das emoções na teorização de Darwin sobre mente e comportamento é focada basicamente no Expression (DARWIN, 1998b [1872]), publicado por Darwin em 1872, um ano depois da publicação do Descent. Richards faz uma breve descrição dos três princípios de expressão emocional enumerados por Darwin (que serão especificados no capítulo 3) no 20 Expression, demonstrando que na teoria darwiniana essas formas de expressão emocional seriam instintos adquiridos meramente pela força do hábito. Assim, comparando a teoria de Darwin à dos modernos etologistas, afirma que “enquanto os etologistas modernos atribuem às expressões dos animais funções comunicativas vitais, Darwin negava que as respostas emocionais tivessem qualquer uso que fosse, motivo pelo qual ele não invocou a seleção natural para explicá-las” (RICHARDS, 1989, p. 230). Com esse raciocínio, parece considerar justificada sua decisão (que não chega a ser assim explicitada) de deixar de lado o papel das emoções na discussão das teorias de Darwin sobre mente e comportamento. Apesar de a visão de Richards sobre a história do darwinismo ser freqüentemente marcada por um posicionamento questionador das concepções mais comuns, sua abordagem da questão das emoções na obra de Darwin parece seguir a mesma orientação que a da maioria dos historiadores. Quando se discute o papel das emoções na teoria darwiniana, a tendência que tenho observado na literatura especializada (BURKHARDT, 1985; CORNELIUS, 2000; GHISELIN, 1984; GREGORY, 1987 ; RICHARDS, 1989) é a de voltar-se para o Expression, a obra mais específica de Darwin sobre emoções. Quero aqui defender que essa pode ser uma abordagem equivocada. Janet Browne, num artigo no qual analisa especificamente o Expression, aponta que o objetivo básico desse livro era “demonstrar que até mesmo as características mais ‘humanas’ eram, em sua raiz, derivadas dos animais”. Por isso, continua a autora, “a chave para o Expression é encará-lo como uma continuação do Descent.”. Afirma que é essencial ler um volume depois do outro para compreender qual é realmente o ponto central de seus argumentos, pois “muito 21 do que aparece no Expression é apenas resumido no Descent, e vice-versa”. E defende que os objetivos dos dois trabalhos eram virtualmente idênticos. Em ambos, Darwin teve a intenção de demonstrar que o homem é derivado de alguma forma inferior, ou melhor, que o homem, como todas as demais espécies, descendia de alguma forma pré-existente. E a autora vai mais longe, ao sustentar que “o Descent foi obviamente e sem dúvida o estudo mais importante, constituindo sua obra prima sobre o homem, uma resposta à pergunta crucial deixada intocada pelo Origin. O Expression é claramente um livro secundário.” (BROWNE, 1985, p. 309). No Descent, os capítulos 3 e 4 - os mais relevantes quanto à discussão das emoções animais e humanas - são ambos intitulados “Comparison of the Mental Powers of Man and the Lower Animals”. Nesses dois capítulos podemos observar que Darwin enumera uma grande quantidade de faculdades mentais, um bom número das quais podem ser consideradas emoções ou comportamentos/atitudes de motivação emocional. São algumas delas: terror; desconfiança; coragem e timidez; variações de humor ; vingança; amor; afeto materno; pesar diante da perda; simpatia6 e fidelidade. Outras que Darwin considera “emoções mais complexas” são: ciúmes; rivalidade; gosto pela aprovação ou elogio; satisfação consigo mesmo ou orgulho; vergonha; humildade; magnanimidade; reação hostil diante de zombaria; senso de humor. Na lista do que chama “emoções e faculdades mais intelectuais” misturam-se atributos cognitivos de várias categorias: razão; imaginação; curiosidade; imitação; atenção; memória para pessoas e lugares; educação da prole; e duas faculdades que poderíamos incluir no rol das emoções: excitação e tédio. 6 Ver nota no 36, na página 71, sobre a tradução do termo em inglês, sympathy 22 Já o Expression, publicado em 1872, um ano depois do Descent, é dedicado a estabelecer o que Darwin chamou de ‘princípios gerais de expressão’7. Descrevendo tais princípios e recheando os quatorze capítulos de exemplos de expressões emocionais de animais e humanos, Darwin defende que esses princípios seriam partilhados pelos ditos animais superiores, incluindo o homem. Vemos, assim, que no Descent - considerado a mais importante obra de Darwin a abordar a questão da mente (BROWNE, 1985; RICHARDS, 1989) - dois capítulos exploram inúmeras faculdades emocionais. E que as emoções chegam a figurar mesmo no título de uma das obras de Darwin: o Expression. Cabe aqui, então, um questionamento: seriam as emoções tão pouco importantes no estabelecimento da teoria da mente em Darwin quanto sugere a mais abrangente obra até hoje publicada sobre esse assunto, a de Richards, em 1989? O segundo capítulo da dissertação terá início com uma breve análise dos elementos que compõem a teoria da mente em Darwin. Que influências sofreu Darwin na elaboração de sua teoria da mente? De que estratégias argumentativas lançava mão para defender sua concepção da mente animal? Quais eram os componentes da mente animal na concepção de Darwin, e qual a importância de cada componente? Em seguida, com um tratamento mais aprofundado, será discutida especificamente a importância das emoções na teoria darwiniana da mente. Discorrerei sobre o status das emoções no contexto sócio-cultural vitoriano. Relacionarei o conceito de origem comum e o princípio da continuidade com o lugar das emoções na teoria darwiniana. E finalmente, para melhor analisar a importância das emoções enquanto atributos 7 Ver capítulo 2 para mais detalhes sobre esses três princípios 23 mentais na obra de Darwin, pretendo fazer uma análise de caso. Para tal recorrerei à ajuda de um antigo companheiro do homem, e mais especificamente do homem Charles Darwin: o cão O ANIMAL DARWINIANO: O CÃO COMO PORTADOR DE EMOÇÕES Em minhas leituras das obras de Darwin acima mencionadas, chamou- me a atenção desde o princípio um contraste histórico. Da teoria da origem comum emergia um animal muito diferente do animal cartesiano, mero autômato desprovido de mente. Pois o animal darwiniano era capaz de pensar, sentir, sofrer. Ponderava, fazia escolhas, cooperava com seus companheiros de grupo. Era ora vingativo, ora fiel; amava e odiava,. Atravessava emoções. Um animal inteligente e sensível. Um animal, assim como os homens, dotado de mente. Talvez o melhor representante, na obra de Darwin, desse animal sensível e inteligente seja o cão. Objeto de grande valorização na vida social da Inglaterra desde o período moderno (THOMAS, 2001), o cão parece ter reunido os atributos necessários para portar a bandeira da teoria darwiniana da mente animal na Inglaterra vitoriana. Por isso o capítulo 3 será dedicado a uma análise de caso. Lançando mão do “método espécime-tipo”, descrito por David Hull (1985) e que será explicado em mais detalhes no capítulo 3, tomarei como unidade de análise o que chamarei de “o cão de Darwin”. Ou seja, o cão como percebido e descrito no discurso de Charles Darwin, no papel de protótipo do animal darwiniano. E, como tal, um animal que experimentava não somente uma vida biológica exteriorizada, mas também uma bem marcada vida interior. Mais especificamente, pretendo estudar o cão enquanto portador de emoções 24 TESES DEFENDIDAS Com base nas afirmações acima mencionadas - que serão devidamente aprofundadas ao longo dos capítulos - pretendo aqui formular as teses que defenderei nessa dissertação. Minha tese central é de que a importância das emoções enquanto faculdades mentais tem sido negligenciada pelos estudos até agora existentes sobre a teorias da mente e comportamento em Darwin (BROWNE, 1985; BURKHARDT, 1985; GHISELIN, 1984; RICHARDS, 1989). Sustento, mais especificamente, que a atribuição de emoções aos animais tem um peso maior na argumentação de Darwin em defesa da continuidade evolutiva entre animais e homem do que sugere a literatura especializada. Penso também que dentro da própria teoria moral darwiniana as emoções desempenham importante papel, e que não é possível discorrer sobre a teoria da moral em Darwin sem abarcar o problema das hoje denominadas “emoções morais” (HAIDT, 2003). Sem entrar no julgamento de qual das duas obras é mais importante em si, é fato que o Expression é visível e reconhecidamente um trabalho bem específico sobre a expressão das emoções, e não sobre sua importância como atributo mental. Assim, outra tese que defenderei ao longo dessa dissertação, é de que a principal obra de Darwin sobre o papel das emoções na vida mental dos animais e do homem não é o Expression, mas sim o Descent. Após seguir o cão de Darwin em seus ardis de caça, em suas lembranças de vivências passadas, em sua fidelidade empática, em sua devoção quase religiosa e amor incondicional ao seu dono, espero, ao chegar à Conclusão, ter apresentado o leitor a um novo aspecto do animal darwiniano. 25 Um animal dotado não apenas de instintos e racionalidade, mas também submetido a uma rica vida emocional. Por essa via espero ter então demonstrado que as emoções constituem aspecto altamente significativo da teoria da mente animal e humana em Charles Darwin. TERMINOLOGIA, ELEMENTOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS Na historiografia do darwinismo vigora uma polêmica discussão. Diz respeito à delimitação de critérios para estabelecer: 1) o que foi o darwinismo no século XIX; 2) quais autores de então devem ser considerados darwinistas ou anti-darwinistas; 3) qual a diferença entre a teoria de Darwin propriamente dita e o programa de pesquisa darwinista, mais amplo. Começando pela última questão, adotarei nesse trabalho o termo darwiniano para me referir ao que se refere especificamente ao pensamento, discurso e teorias de Charles Darwin. Já o termo darwinista como substantivo será aplicado aos autores considerados darwinistas, e como adjetivo será usado para designar aspectos ligados ao programa de pesquisa do darwinismo. Seguindo Hull (1985), considerarei como darwinistas os autores que participavam ativamente e eram aceitos no círculo social de Darwin e que, com ele, cuidavam de defender e edificar o flexível programa de pesquisa do darwinismo. Já o termo “darwinismo” será aqui compreendido, ainda seguindo Hull (1985) como uma entidade histórica, um sistema conceitual que foi sofrendo variadas alterações ao longo de seu desenvolvimento, desde seu nascimento até os dias atuais. Nas discussões e análises que farei ao longo de todo esse trabalho o darwinismo e seu desenvolvimento serão importante parte integrante do ambiente de idéias no qual foram travados o debates e embates sobre o tema 26 da mente. É fundamental ressaltar, porém, que o autor sobre o qual meu foco estará concentrado todo o tempo é especificamente Charles Darwin. Com isso quero enfatizar que não tenho a intenção nem a pretensão de analisar os discursos sobre a mente animal de todos os autores envolvidos no programa darwinista. Alguns desses autores inevitavelmente aparecerão ao longo do texto, mas apenas como interlocutores de Darwin, para que se possa esboçar um quadro satisfatório do meio intelectual e das teses defendidas e debatidas no período estudado. Seguindo Ellegard (1990), o período estudado estender-se-á de 1859 (data de publicação do Origin) a 1872 (data de publicação do Expression). O motivo para tal escolha é que esse período abrange desde a inauguração do programa de pesquisa darwinista até o lançamento da primeira edição do Expression, última obra de Darwin utilizada como fonte primária. Além disso, vários autores, tanto aliados como adversários de Darwin, publicaram em algum momento desse período obras relacionadas à origem do homem e sua inserção na ordem natural (ELLEGARD, 1990; RICHARDS, 1989). E esse tema estava diretamente relacionado e imbricado com a discussão da mente humana e animal. 27 CAPÍTULO 1: A árvore da vida e o florescer da mente SOBRE O NASCIMENTO DO ORIGIN Em meados do século XIX, às vésperas da década de 1860, mais especificamente aos 26 de novembro de 1859, foi publicada a primeira edição do Origin of Species, por Charles Darwin (DARWIN, 2002 [1859]). Para grande surpresa do editor, a modesta tiragem de 1250 exemplares se esgotou no mesmo dia de seu lançamento8. Aquele era um período de grande ebulição cultural e científica. Muitas das idéias novas que já há muito fermentavam começavam agora a borbulhar mais intensamente, e nas mais diversas frentes do saber ocidental novas teses eram proclamadas e defendidas. No campo político-econômico prosperava o modelo do laissez-faire capitalista, amparado pela teoria malthusiana da regulação populacional (BOWLER, 1989; KNIGHT, 1981; SHAPIN, 1999). Mesmo na teologia, já anteriormente minada pelo materialismo iluminista (BOWLER, 1989), havia uma ambiência de flexibilidade e variedade de teses em debate que fragilizava o status da Igreja Anglicana (BROWNE, 2003). O modelo de um universo físico em evolução já era ponto de discussão na geologia e na cosmologia. Nessas ciências, e também na biologia, as chamadas teorias de desenvolvimento (development theories) agora opunham-se às ortodoxas teorias do estado fixo (steady-state theories), mais compatíveis com a perspectiva do criacionismo fixista (BOWLER, 1989, p. 10). No universo da história natural, tinha início uma era de gradual e crescente especialização e profissionalização. Surgia a demanda por um novo tipo de cientista natural, capacitado e empenhado num tipo de investigação mais especulativa, muito diferente da atitude típica do naturalista amador, de basicamente coletar e classificar exemplares de diferentes espécies. (ibid, p. 8 Nota dos Editores da 4a edição da tradução brasileira da Origem das Espécies, de Charles Darwin, Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002 17 190). Isso porque enquanto a primeira metade do século XIX fora devotada a revelar a variedade na natureza, na segunda metade nascia um esforço coletivo de explicar como e porque ocorria essa variedade (ALLEN, 1978, p. 179). Knight (1981, pág. 28) chama atenção para o fato de que nesse contexto de instabilidade das instituições sociais “as lutas eram a regra”, e que portanto a idéia de ‘luta pela existência’ - cunhada por Herbert Spencer e adotada por Darwin - soava como um padrão óbvio para a natureza. Dessa forma, a teoria darwiniana estava bem de acordo com o espírito da época. Mas, ainda com todos esses elementos favoráveis, foi grande o impacto do Origin sobre o pensamento ocidental. E na Inglaterra vitoriana esse impacto foi especialmente sentido por todas as implicações das teses contidas nessa obra quanto ao lugar e status do homem no mundo natural. Pois a filosofia inerente ao discurso de Darwin trazia em seu bojo concepções muito ameaçadoras aos valores e doutrinas teológicas então predominantes. Dentre tais ameaças, a idéia de uma mente animal como precursora da mente humana ocupava lugar de destaque. O ORIGIN - DESPONTAR DO DARWINISMO E A TEORIA DA ORIGEM COMUM Embora as primeiras discussões sobre a evolução dos seres vivos sejam anteriores a Darwin, Ernst Mayr (1998, p. 29) afirma que "nada assinalou de modo mais definitivo a emancipação da ciência em face da religião e da filosofia do que a revolução darwiniana". Se nos séculos XVII e XVIII ciência e religião eram aliadas na tentativa de explicar a ordem natural (SHAPIN, 1999, p. 144), a partir do século XIX as duas entram em franco antagonismo 18 (BOWLER, 1989; ELLEGARD, 1990; MAYR, 1998). A publicação, em 1859, de The Origin of Species, promoveria uma profunda e revolucionária transformação na forma de entender o lugar do homem no mundo natural. Com o alvorecer do darwinismo - deflagrado pelo Origin - efetuava-se uma ruptura em relação ao conhecido “argumento do projeto” da teologia natural do século XVII, que considerava a natureza como um livro de autoria divina, e os seres vivos, com seus desenhos adaptativos perfeitos, a evidência mais forte do ato da Criação e da existência de um Criador (SHAPIN, 1999). O programa de pesquisa darwinista, que ora florescia, substituía a explicação teológica por uma explicação naturalística. Retirando do homem seu status especial de criatura única dotada de alma imortal de origem divina, o darwinismo o nivelava com os demais seres vivos como apenas mais um ator no palco do drama evolutivo. Nesse novo programa que nascia, a discussão das faculdades mentais - humanas e animais - seria um aspecto que ganharia importância crescente, nos anos seguintes, nos discursos de Darwin e de seus aliados e adversários9. Particularmente importante na discussão da mente em Darwin é sua tese, exposta já no Origin, de que todos os seres vivos compartilham uma ancestralidade comum. Como implicação dessa concepção, também a mente humana teria raízes nessa mesma relação de continuidade biológica com os (demais) animais. Essa tese específica de Darwin merece, ao meu ver, um tratamento em separado, e para tal adotarei uma subdivisão da teoria evolutiva de Charles Darwin proposta por Mayr (1998). Esse autor defende que embora Darwin provavelmente considerasse todos os componentes de sua teoria 9 Como veremos mais adiante, nem todos os aliados de Darwin concordavam com a opinião deste a respeito da origem e desenvolvimento da mente, sobretudo no que se refere à seleção natural como causa postulada. 19 evolucionista como um todo único e indivisível, a teoria darwinista não era na verdade uma, e sim cinco teorias “amplamente independentes”, a saber: 1) evolução como fato; 2) origem comum de todos os seres vivos (common descent); 3) gradualidade do processo evolutivo; 4) especiação populacional; e 5) seleção natural. Mayr defende que na realidade, emerge uma imagem muito mais clara se essas cinco linhas do pensamento darwiniano forem tratadas em separado (MAYR, 1998, p. 564). Para sustentar sua tese, demonstra que muitos dos principais autores contemporâneos de Darwin e participantes do programa de pesquisa darwinista não concordavam entre si ou com Darwin quanto à importância desses cinco componentes da teoria maior, e isso não os excluía do projeto darwinista, desde que compartilhassem do primeiro e do segundo desses itens (evolução como fato e origem comum). Apesar da grande força heurística da teoria da seleção natural, seu status é ainda hoje objeto de muita polêmica enquanto causa principal das estruturas adaptativas dos organismos. Mas poucos especialistas negam sua importância dentro do corpus teórico do darwinismo atual. Além disso, a noção de seleção natural constituía certamente uma tese especialmente cara a Charles Darwin, e fundamental em seu esquema explicativo do processo evolutivo. Se entendermos, porém, o darwinismo como uma entidade histórica (HULL, 1985) que, como tal, foi sofrendo alterações ao longo de seu desenvolvimento, veremos que dentro do programa mais amplo do darwinismo, a seleção natural estava longe de ser, no século XIX, um ponto de consenso. Pretendo estar assim justificando os motivos metodológicos que me levaram a não dar maior destaque à teoria da seleção natural no texto dessa dissertação. A tese que parece melhor ter ocupado o lugar de ponto de consenso no 20 programa darwinista do século XIX e, como já foi dito, a mais diretamente ligada ao tema da mente - é a da origem comum (common descent)10, que pretendo articular com a concepção de Darwin da mente animal. A ORIGEM COMUM COMO PRINCÍPIO UNIFICADOR Peter Bowler argumenta que foi a grande flexibilidade de abordagens dentro desse programa de pesquisa que permitiu a coesão do grupo darwinista original, e que “o darwinismo não fosse apresentado como um compromisso dogmático, do tipo tudo-ou-nada, à [noção de] seleção natural” (BOWLER, 1989, p. 194). Esse autor aponta a concepção de origem comum como um elemento unificador de identidade do darwinismo, um ponto de concordância em meio à ampla diversidade de teses e detalhes sobre os quais muitas vezes discordavam os autores darwinistas. Além disso, dentre os cinco componentes anteriormente mencionados da teoria darwiniana listados por Mayr (1998), o mais diretamente ligado às questões da posição do homem no mundo natural e da relação entre as mentes humana e animal seria a noção de origem comum, certamente a mais enfatizada nas duas obras de Darwin aqui usadas como referências para estabelecer como seria sua teoria da mente. Mayr (1998, p. 140) aponta que a teoria da origem comum colocou em ação todo um exército de zoologistas, anatomistas e embriologistas em busca da determinação do parentesco e das prováveis características dos ancestrais comuns inferidos. Os esforços individuais e conjuntos desses batalhôes acabaram por reunir inúmeras evidências que a teoria da origem comum 10 Algumas traduções em português adotam “descendência comum”, que me parece inadequada. Uma vez que o vocábulo descent está ligado à noção de ancestralidade, e não de descendência, provavelmente “ascendência comum” fosse a expressão mais apropriada. Para contornar um risco de polêmica interpretativa, optei aqui por “origem comum” como equivalente a common descent. 21 explicava, mas que não recebiam qualquer explicação com base no princípio da criação em separado, então advogada pelos adeptos da teologia natural (ELLEGARD, 1990, p. 280). Tais evidências, segundo Ellegard, incluíam dados relativos a: distribuição geográfica das espécies; presença de órgãos rudimentares em vários animais; observações de semelhanças no desenvolvimento embriológico de organismos pertencentes a grupos taxonômicos relativamente distantes. Além disso, continua Ellegard, analogias estabelecidas por Darwin com outras disciplinas também reforçavam sua argumentação em favor da tese da origem comum - a saber, a geologia (teoria uniformitarista de Charles Lyell) e a filologia (alegada semelhança entre a origem das espécies e a das linguagens a partir de um primeiro tronco ancestral único). A todos esses conjuntos de evidências somar-se-iam, posteriormente, aquelas arroladas por Darwin em defesa da posse de numerosas faculdades mentais pelos animais. Estas envolviam, entre outros: memória, atenção, imaginação, raciocínio, instintos sociais (que Darwin enunciaria como uma espécie de precursores do comportamento moral humano) e uma grande quantidade de expressões e experiências emocionais (DARWIN, 1998a [1871]). A ÁRVORE DA VIDA E O FLORESCER DA MENTE A tese da origem comum postula ter a vida surgido uma única vez no planeta (Darwin jamais se aventurou a especular sistematicamente sobre a origem da vida propriamente dita), e que todos os seres vivos - atuais ou extintos - seriam descendentes desse primeiro proto-organismo. Isso implicava, 22 como vimos, uma herança biológica ancestral partilhada por todos os seres vivos. Assim sendo, a evolução da vida no planeta podia ser representada pela imagem de uma árvore. Na base dessa árvore situar-se-ia o primeiro organismo, ancestral remoto de todas as formas de vida, e seus galhos representavam as complexas ramificações dos diversos grupos taxonômicos a compartilhar diferentes graus de parentesco. A tese da origem comum é importante o bastante para figurar nos últimos parágrafos do capítulo conclusivo da primeira edição do Origin: A extensão da história do mundo assim como a conhecemos, embora nos pareça de uma enormidade acima de nossa compreensão, a partir de então será reconhecida como constituindo um mero fragmento de tempo, comparado com as eras decorridas desde a criação do primeiro ser animado, o progenitor de todos os inúmeros seres vivos e extintos.(DARWIN, 2002 [1859], p. 380; itálicos meus) Na verdade, é a essa tese que são dedicadas as famosas últimas linhas dessa obra: Existe efetiva grandiosidade neste modo de encarar a Vida que, juntamente com todas as suas diversas capacidades, teria sido insuflada numas poucas formas, ou talvez numa única, e que, enquanto esse planeta continuar a girar, obedecendo à imutável Lei da Gravidade, as formas mais belas, mais maravilhosas, evoluíram a partir de um início tão simples, e ainda prosseguem hoje em dia nesse desenvolvimento. (DARWIN, 2002 [1859], p. 381; maiúsculas do autor) Há ainda algo importante a ser dito acerca das implicações da teoria da origem comum. A partir de algum momento no processo evolutivo, alguns dos ramos da árvore da vida começam a gerar seres com um novo atributo adaptativo: a mente. Em Darwin essa mente não mais é o grande distintivo demarcador da singularidade humana. Na verdade, o primeiro broto de mente a florescer na árvore da vida surge antes, muito antes do homem. Nasce como mente animal, em ramos muito mais antigos, em formas ainda muito 23 “inferiores”, nas palavras de Darwin (1998a [1871], 1998b [1872], 2002 [1859]). E nesse broto de mente já está presente o componente emocional, visto que na percepção desse autor “até os insetos exprimem raiva, terror, ciúme e amor com sua estridulação”. ( DARWIN, 1998b [1872], p. 347). A ‘PRIMEIRA REVOLUÇÃO’ E O DESTRONAMENTO DO HOMEM Mayr (1998, p. 140) enfatiza o caráter filosófica e epistemologicamente revolucionário da tese da origem comum, a qual considera uma das teorias mais heurísticas que jamais foram propostas. Afirma que essa teoria privou o homem do seu lugar único no universo, e por isso a designa “a primeira revolução darwiniana” (ibid., p. 99). A segunda revolução, segundo Mayr (ibid.), seria aquela causada pela teoria da seleção natural, cujos impactos não foram de todo assimilados até os dias de hoje (DENNET, 1998). Esse destronamento do homem não se daria senão à custa de muitas rusgas. Na verdade, poderíamos dizer que ele se deu por etapas. Através de um extenso estudo sobre a recepção do darwinismo na imprensa britânica no período de 1859 a 1872, Ellegard (1990) demonstra no livro Darwin and The General Reader que após acirrados e prolongados debates entre os darwinistas e seus opositores, a teoria darwiniana foi progressivamente avançando, até a questão da evolução tornar-se central ao pensamento biológico. Esse autor aborda de forma detalhada as várias frentes de debate entre os darwinistas e os cientistas e religiosos adeptos da então vigente teologia natural, e mostra como esses últimos foram sendo obrigados a ceder terreno e reformular suas teses na medida em que os evolucionistas partidários de Darwin iam reunindo argumentos e evidências em seu favor. Assim, 24 primeiramente o acúmulo de descobertas fósseis forçou os fixistas a abrir mão de sua perspectiva, segundo a qual todas as espécies vivas atualmente existentes estavam na Terra desde os primórdios da criação, e admitir como fato a evolução das espécies. No passo seguinte do desenrolar desse debate não havia como evitar a questão crucial implicada no bojo dessa polêmica: a da origem do homem e sua inserção no reino animal. A instância da mente humana, em particular, seria foco da mais obstinada resistência, dada sua significância para assegurar o tão caro status teológico e ideológico da singularidade humana, por abranger em seu domínio características tais como a razão e a moralidade. Ellegard propõe uma classificação específica das reações e atitudes dos diversos grupos de autores e atores sociais contemporâneos de Darwin no que dizia respeito à origem e desenvolvimento do homem. Esse autor divide em três tipos as teses a respeito do tema. Num extremo havia a posição que Ellegard chama de “criação em separado” (separate creation). Os advogados dessa tese defendiam que o homem como um todo - corpo e alma - teria sido criado de forma independente do resto do mundo orgânico. Era essa a tese dos criacionistas mais ortodoxos. A posição intermediária seria a da “criação mental” (mental creation). Aqueles que adotaram essa tese admitiam que o corpo do homem teria evoluído da mesma maneira que o dos animais inferiores, mas insistiam na concepção de que a alma humana teria sido criada em separado - e, portanto, não seria fruto do processo biológico evolutivo. No outro extremo havia a tese do “desenvolvimento” (development) . Tal posição sustentava a evolução gradual tanto do corpo como da alma. (ELLEGARD, 25 1990, p. 31). Era essa a posição defendida por Darwin e por muitos (mas não todos) aliados seus. O HOMEM NO ORIGIN: A ÁRVORE DA VIDA E A “CATÁSTROFE MENTAL’ Tão delicada era essa questão, que no Origin Darwin evitou a explicitação da inclusão do homem em sua metafórica árvore da vida. Richards (1989) afirma que tal discrição por parte de Darwin tinha como motivo sua preocupação em obter a maior audiência possível, evitando ao máximo uma recepção inicial demasiado hostil a uma tese que já trazia tantos elementos perturbadores às crenças então vigentes. Em estilo estrategicamente evasivo, Darwin só fez duas breves alusões à evolução da espécie humana na primeira edição de sua obra prima (DARWIN, 2002 [1859]). A primeira delas diz respeito ao papel da seleção natural e da seleção sexual na formação das raças humanas: Os animais criados por povos selvagens de diversas regiões muitas vezes têm de lutar por sua própria subsistência, expondo-se em certo grau à seleção natural. Indivíduos dotados de constituição ligeiramente diferente terão maior probabilidade de sobrevivência em determinados climas, e há razões que nos levam a crer serem correlatas à constituição e a coloração externa. (...) Para complementar esses exemplos, eu poderia ter acrescentado as diferenças entre as raças humanas, que são fortemente marcadas, assim como poderia adiantar algumas explicações acerca da origem dessas diferenças, especialmente no que se refere a um determinado tipo de seleção sexual; entretanto, visto não poder entrar aqui em muitos pormenores, 26 tudo o que poderia ser apresentado acabaria parecendo mera especulação despida de maior seriedade. (DARWIN, 2002 [1859], p. 178). E numa das últimas páginas dessa mesma obra Darwin afirma: No futuro distante, visualizo novos campos que se estendem para pesquisas ainda mais importantes. A Psicologia irá basear-se num fundamento novo, o da necessária aquisição gradual de cada faculdade mental. Nova luz será lançada sobre o problema da origem do homem e de sua história. (ibid., p. 380; itálicos meus) Mas note-se a sutileza estratégica de colocar essa última frase num parágrafo imediatamente após aquele em que explicita a noção de origem comum (citado anteriormente na página 23),. Noção à qual retorna, aliás, logo no parágrafo seguinte, questionando o dogma criacionista clássico: Os mais eminentes autores parecem estar plenamente satisfeitos com a teoria de que cada espécie teria sido criada independentemente. (...) Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes lineares de uns poucos seres que viveram bem antes que se depositasse a primeira camada da Era Siluriana, a mim parece que tais seres saem engrandecidos. (ibid., p. 380; itálicos meus). Assim, podemos afirmar que a inclusão do homem na árvore da vida estava implícita no Origin, uma vez que o homem obviamente participa desse conjunto de “todos os seres”. Tal inclusão não era destituída de problemas, e não passaria desapercebida pelo público, especializado ou leigo. Ellegard (1990) aponta que uma vez que a organização física do homem o situava, nos sistemas taxonômicos, junto aos animais, era inevitável que a doutrina fosse aplicada também a este. E enumera os motivos pelos quais considera mais apropriado tratar a aplicação da teoria darwiniana sobre o homem separadamente de sua aplicação ao mundo orgânico inferior. O primeiro desses motivos seria a existência de problemas relacionados às esferas 27 intelectual e moral (qualidades mentais), que diziam respeito quase que exclusivamente à espécie humana. Em segundo lugar, sustenta Ellegard, a questão do homem era tão intimamente ligada às convicções religiosas e outras, que os contemporâneos de Darwin com freqüência procuravam manter tal questão isolada do problema geral da evolução. E, em terceiro lugar, o tratamento do homem em separado seria justificado pelo calor e furor com que a aplicação da teoria ao homem era discutida. (ELLEGARD, 1990, p. 293). Esse calor e furor estavam direta e principalmente relacionados ao debate sobre a singularidade da mente humana. O temor inspirado pelos inevitáveis desdobramentos da teoria da origem comum para o campo da mente é bem exemplificado pela expressão usada ainda em 1859 por um crítico, ao se referir às implicações dessa tese como uma “catástrofe mental”11. O HOMEM EM FOCO O Origin foi publicado no último ano da década de 1850. A década seguinte e os primeiros anos da década de 1870, por sua vez, testemunhariam inúmeros movimentos sociais e culturais.. Ainda que muitos deles se opusessem ao pensamento evolucionista, os naturalistas figuravam então como os principais adeptos do darwinismo (BROWNE, 2003). Novidades científicas também pareciam endossar os argumentos darwinianos. Em 1861 o explorador franco-americano Paul Belloni du Chaillu publicava Explorations and Adventures in Equatorial Africa12, obra típica do século XIX, repleta de narrativas das aventuras e descobertas de um desbravador das selvas africanas. Nela du Chaillu relatava de forma tipicamente exagerada seus 11 Rambler, 2, 1859-60, citado em Ellegard, 1990 12 citado em Ellegard, 1990 28 notáveis encontros com o gorila, animal praticamente desconhecido então do grande público. Esse livro tornar-se-ia um best seller comentado em toda imprensa, e a aparência e comportamento desse grande primata - então considerado o parente vivo mais próximo do homem - seriam objeto de grande curiosidade pública (ELLEGARD, 1990). No início da década de 1860 alguns aliados de Darwin formaram um seleto time auto-intitulado X-club, que contava em suas fileiras com nomes do porte de Thomas Huxley, John Tyndall, Herbert Spencer, Joseph Hooker e John Lubbock. Os membros desse clube reuniam-se para debater temas evolucionistas e articular políticas de divulgação e promoção de uma “ciência livre de dogmas” e, em particular, do darwinismo. (BROWNE, 2003, p. 247). As atividades do grupo lograram considerável êxito: infiltravam aliados em comitês governamentais; promoviam edições americanas de autores ingleses que considerassem significativos; apoiavam o crescimento profissional de jovens naturalistas seus simpatizantes. Uma importante conquista desse grupo foi a fundação, em 1869, do periódico Nature, até hoje existente e muito bem conceituado, e cuja primeira edição teve sua introdução redigida por ninguém menos que Thomas Huxley. Darwin foi um assinante da Nature até o último dia de sua vida. Browne (2003) enfatiza que embora Darwin não fosse um membro do X-club, os participantes desse grupo assumiram para si a perspectiva de Darwin como se fosse deles próprios. A autora afirma (ibid., p. 249) que “sem os Xs, as idéias de Darwin nunca teriam se entranhado na cultura britânica tão rapidamente como o fizeram”, e que por isso “Darwin fazia tudo que podia para ajudá-los”, tanto que “deliberadamente emprestava seu nome aos Xs”. 29 O materialismo crescente não era privilégio do darwinismo. Na ainda embrionária psicologia do período, havia um movimento em direção a uma explicação materialista da mente, em termos de funções cerebrais (BOWLER, 1989; YOUNG, 1990). Além disso, questões biológicas, antropológicas e etnográficas eram levantadas e tratadas dos mais diversos pontos de vista. A imprensa comum e a mais especializada também publicavam artigos sobre o tema, e a British Association passou a ter uma seção separada de Antropologia a partir de meados da década de 1860 (ELLEGARD, 1990, p. 296). Nesse contexto as raças humanas eram importante objeto de debates, e confrontavam-se adeptos de duas posições básicas: o poligenismo, que postulava origens biológicas diferentes para cada raça, e o monogenismo, que defendia uma ancestralidade em comum entre as raças. Essa segunda posição era sustentada pelos membros da Ethnological Society, enquanto que a Anthropological Society, fundada em Londres em 1863 por James Hunt, defendia a doutrina poligenista, sublinhando uma biologia da diferença humana (BROWNE, 2003, p. 252). Nesse mesmo ano de 1863 na França era lançado Vie de Jésus, de Ernest Renan, depois traduzido para o inglês pela escritora George Eliot. Nesse estudo, o autor apresentava um Jesus humano, destituído de sua divindade - ponto que chamou a atenção de Darwin e Emma, sua esposa, ao lerem o livro (BROWNE, 2003, p. 189). Tudo isso compunha o solo onde havia de lançar raízes e se desdobrar o programa darwinista. Nesse solo a origem do homem era um ponto central e nevrálgico de preocupação, que sempre ramificava em discussões sobre a origem da mente. Foram anos ricos em publicações de obras contendo 30 diversas teses concorrentes a respeito do lugar do homem no mundo natural. Sempre em sintonia com o que acontecia ao seu redor, Charles Darwin dedicava boa parte de seu tempo e esforços na década de 1860 a investigar a origem e natureza humanas (BROWNE, 2003, p. 203). Em suas anotações as comparações entre a mente animal e a mente humana eram freqüentes (RICHARDS, 1989). Mas somente no início da década de 1870 Darwin ousaria enfim publicar suas idéias sobre a origem animal da mente humana. Oito anos antes, Charles Lyell e Thomas Huxley dariam a partida nessa discussão DARWINISMO EM EXPANSÃO O já mencionado ano de 1863 foi especialmente significativo para a expansão do darwinismo. Nesse ano a publicação de três importantes obras veio em reforço aos argumentos e teses de Darwin (BROWNE, 2003, p. 216). No mês de abril o naturalista Henry Walter Bates lançou The Naturalist on the River Amazons, livro no qual apresentava o conceito de mimetismo entre insetos. Nas páginas do texto figuram abundantes casos de mimetismo entre grupos taxonomicamente distantes, nos quais várias espécies de insetos “imitam” a aparência física de insetos de outras espécies, o que lhes conferia formidáveis vantagens adaptativas. Para tais casos era difícil oferecer explicação melhor que a teoria da seleção natural. O livro e o autor muito agradaram Darwin (BROWNE, 2003). Antes ainda de Bates, Charles Lyell publicou em fevereiro The Geological Evidence of the Antiquity of Man with Remarks on Theories of the Origin of Species by Variation (mais conhecido como The Antiquity of Man). Nessa obra Lyell apresenta evidências geológicas em favor de uma história do 31 homem muito mais remota que aquela até então divulgada nos livros. Num período no qual ainda eram escassos os achados fósseis de espécies hominídeas ancestrais, Lyell já forjava a expressão “elos perdidos”, que permaneceria até os dias de hoje (BROWNE, 2003, p. 218). Mas a alegria com que Darwin recebera a notícia dessa publicação estava destinada a transformar-se em decepção, ao constatar o quão reticente Lyel fora quanto à continuidade biológica entre os animais e o homem. Além disso, ao fim do livro Lyell ressaltou que havia um abismo entre o homem e os animais, e que a forma como tal abismo fora atravessado permanecia “um profundo mistério”. “Estou muito desapontado com o excesso de cautela de Lyell” - teria Darwin comentado com Huxley13. Mas se o livro de Lyell foi fonte de decepção para Darwin, o mesmo não pode ser dito da obra lançada por Huxley poucas semanas depois. No início da década de 1860, Thomas Henry Huxley - apelidado de “buldogue de Darwin” pela maneira beligerante como defendia as teses darwinistas (BOWLER, 1989), envolveu-se numa prolongada e calorosa disputa com Richard Owen - eminente anatomista anti-darwinista, conhecido então como ‘o Cuvier inglês’, inserido na escola idealista, de orientação essencialista e inspirada nos paradigmas da teologia natural (ELLEGARD, 1990). O debate entre ambos dizia respeito ao grau de similaridade cerebral e, portanto, de parentesco entre o homem e os grandes primatas. Owen e Huxley se enfrentaram inúmeras vezes nos fóruns científicos da Inglaterra vitoriana, e o mais notório confronto entre os dois foi o conhecido “debate do hipocampo” (ELLEGARD, 1990), que envolvia a discussão da presença ou não nos cérebros dos grandes primatas de uma estrutura denominada hipocampus 13 Episódios e trechos citados em Browne, 2003, p. 219 32 minor. Owen defendia ser o hipocampo a sede da faculdade da razão, e, portanto, presente exclusivamente no cérebro humano. A ele se opunha Huxley, que acabou por vencer esse prolongado debate, demonstrando que também o gorila (então considerado o mais próximo parente vivo da espécie humana) era dotado dessa estrutura cerebral. Essa disputa culminou com a publicação, em fevereiro de 1863, de Man’s Place in Nature (doravante denominado Man´s Place), no qual Huxley declara de forma explícita o que Darwin não havia senão insinuado em Origem das Espécies: o íntimo parentesco entre os homens e os grandes primatas, que partilhariam uma herança biológica comum. Uma vez que Huxley, provavelmente em decorrência de sua própria formação e área de atuação, concentrou ao longo de todos os capítulos seu foco na anatomia comparada, a estrutura argumentativa de seu discurso em Man’s Place tem como ênfase a discussão das estruturas físicas. Mas havia uma implicação clara de sua posição, conforme se pode depreender do já citado debate do hipocampo: toda sua argumentação quanto à relação de continuidade biológica entre o cérebro dos grandes primatas e o do homem sugere também uma continuidade mental, visto que naquele período o cérebro já era considerado o órgão por excelência da mente (BOWLER, 1989; YOUNG, 1990). Além disso, ciente da polêmica inerente ao tema - como demonstra o próprio título que escolheu para sua obra - o autor não se furtou a enunciar ou discutir mais diretamente tais aspectos da questão: The question of questions for mankind – the problem which underlies all others, and is more deeply interesting than any other – is the ascertainment of the place which Man occupies in nature and of his relations to the universe of things. (HUXLEY, 2001[1863], p. 59) (…) I have endeavoured to show that no absolute structural line of demarcation, wider than that between the animals which 33 immediately succeed us in the scale, can be drawn between the animal world and ourselves; and I may add the expression of my belief that the attempt to draw a psychical distinction is equally futile, and that even the highest faculties of feeling and of intellect begin to germinate in lower forms of life. (ibid., p. 111; itálicos meus). Essas idéias foram publicadas no seio de uma sociedade e de uma nação que se orgulhavam de perceber-se como o ápice da civilização, a face mais avançada e desenvolvida do gênero humano (noção da qual nem Darwin nem seus aliados discordavam). Um povo que se concebia como o apogeu da manifestação de uma espécie aclamada por sua mente superior, seu poder de domínio, sua singularidade mental perante o mundo natural. Uma espécie privilegiada e única, especial aos olhos do Criador. Não poderia, assim, ter sido pequeno o impacto da concepção da mente animal para a compreensão da mente humana. Assim podemos compreender melhor o título de “primeira revolução darwiniana” atribuída por Mayr (1998) à teoria da origem comum. Por prover a base de sustentação da idéia de uma continuidade física e mental entre organismos taxonomicamente aparentados, essa noção de ancestralidade compartilhada perturbava o glorioso lugar do homem na ordem natural. Pois apresentava um novo homem. Um homem que carregava em sua carne a herança de um passado muito mais longínquo que aquele contado nos livros sobre antigos impérios e civilizações esquecidas. Um homem cuja história remontava à história da origem da própria vida. Um homem cujos antepassados mais remotos nem sequer eram humanos. Era, em última análise, a esses ancestrais não-humanos que devia as raízes até mesmo de suas mais caras faculdades morais, de sua mais aguda racionalidade, de seus mais nobres e sublimes sentimentos. 34 Nos anos que seguiram, várias obras significativas apareceram. Em 1865, Edward Tylor publicou Early History of Mankind e o darwinista John Lubbock lançou Prehistoric Times. Em 1869 George D. Campbell, mais conhecido como ‘Duque de Argyll’, publicaria Primeval Man. No ano seguinte, 1870, Lubbock lançava Origin of Civilization, enquanto Wallace publicava seu polêmico Contributions to the Theory of Natural Selection e o católico Mivart o seu Genesis of Species. Em todas essas obras fervilhavam discussões sobre a origem do homem e sua posição na ordem natural. Grosso modo, poderíamos dizer que parte dessas obras era de teor darwinista; outras, nitidamente criacionistas. Mas esses dois rótulos correm o risco de soar demasiado simplistas quando se trata da discussão então estabelecida sobre a origem da espécie humana. O que havia na prática era um amplo espectro de posições, tanto entre os darwinistas quanto entre seus adversários. E, como já vimos na classificação feita por Ellegard anteriormente apresentada14, o problema da mente era justamente motivo de polêmica e discórdia. DUPLA NATUREZA: A MENTE HUMANA COMO ÚLTIMA TRINCHEIRA Como já foi dito, os adversários da teoria (ou, se levarmos em conta Mayr, teorias) darwinista iam recuando de suas posições ou reformulando-as com bases em novas linhas argumentativas à medida que suas teses iam se tornando insustentáveis dentro da comunidade científica ante o peso das evidências e argumentos adversários (ELLEGARD, 1990). Ellegard (op. cit., p. 269) defende que na década de 1860 a primeira dessas teses (criação em separado) já se tornava insustentável, e entende que a aceitação - pelos teólogos e cientistas de orientação teológica - da teoria da Origem Comum era 14 Ver página 25 35 uma concessão à opinião predominante na época. Afirma que “a doutrina da transmutação já havia sido praticamente aceita pela maioria das pessoas instruídas” (ibid., p. 267), mas essa aceitação não incluía necessariamente a mente humana. Segundo Bowler (1989, p. 218), “a reconciliação da evolução com conceitos tradicionais da teleologia e do design tornaram-se o principal objetivo dos pensadores religiosos que tentavam assimilar a teoria de Darwin” . Ellegard demonstra que não foram poucos os autores que passaram a aderir à segunda posição na classificação anteriormente mencionada por ele proposta (Criação Mental), rejeitando a possibilidade da terceira posição (Desenvolvimento). Em outras palavras, passaram a admitir a continuidade física entre animais e homem, mas não a continuidade mental. Um desse autores foi St. George Mivart. Inicialmente admirado por Darwin e participante de seu círculo de amigos, Mivart, católico militante, foi gradativamente adotando posturas e defendendo teses criacionistas com um discurso um tanto hostil aos darwinistas (BROWNE, 2003). Mivart aceitava a evolução como fato, e acabou aceitando mesmo a origem biológica comum entre o homem e os demais animais. Mas, além de aguerrido crítico da teoria da seleção natural como explicação e mecanismo principal do processo evolutivo (ELLEGARD, 1990), Mivart não aceitava que a tese da origem comum se estendesse à mente humana. E no último capítulo de sua obra principal, The Genesis of Species (MIVART, 1871), discorre longamente sobre o que chama de “a consideração final, uma dificuldade que de forma alguma devemos passar em silêncio, qual seja a ORIGEM DO HOMEM” (pág. 294, maiúsculas do autor): (…) it is no longer absolutely necessary to suppose that any action different in kind took place in the production of man’s 36 body, from that which took place in the production of the bodies of other animals, and of the whole material universe. (…) Man, according to the old scholastic definition, is “a rational animal” (animal rationale), and his animality is distinct in nature from his rationality, though inseparably joined, during life, in one common personality. This animal body must have had a different source from that of the spiritual soul which informs it, from the distinctness of the two orders to which those two existences severally belong. (… ) In this way we find a perfect harmony in the double nature of man, his rationality making use of and subsuming his animality; his soul arising from direct and immediate creation, and his body being formed at first (as now in each separate individual) by derivative or secondary creation, through natural laws. (MIVART, 1871, pp 294-305; itálicos do autor). Na verdade, essa concepção de “dupla natureza” do homem (ou, em outras palavras, de uma criação em separado da mente humana) não era exclusiva dos adversários do darwinismo. Mesmo dentro do núcleo de darwinistas havia divergências bastante significativas quanto à questão da mente animal e da singularidade mental humana. Como já foi visto, Charles Lyell, apesar de defender no Antiquity of Man posição favorável à doutrina da transmutação como hipótese explicativa da origem do homem, fazia a ressalva da existência de um abismo separando o homem dos animais (BROWNE, 2003). E não excluía de suas explicações a possibilidade de saltos por interferência divina no desenvolvimento mental e moral humanos (RICHARDS, 1989, p. 161). O próprio Alfred Russel Wallace, co-autor junto a Darwin da teoria da seleção natural, mudou de visão ao longo de sua trajetória. Em texto publicado em 1864 (logo, um ano após a publicação da obra de Huxley supracitada), no qual discutia a diferenciação entre as raças humanas, Wallace defendia o 37 mecanismo de seleção natural como explicação da origem física e mental do homem. Sua tese era que com a peculiar evolução de sua mente, o homem foi progressivamente anulando as influências da seleção natural em sua estrutura física, embora continuasse sujeito à mesma no aspecto mental (WALLACE, 1864). A partir do fim da década de 1860, porém, Wallace teve seu interesse desperto por sessões mediúnicas de comunicação com os espíritos dos mortos - as quais haviam se tornado uma verdadeira febre então, a ponto de chamar a atenção de vários darwinistas. Assistindo a uma ou mais dessas sessões, alguns destes apenas encontraram ali a confirmação de suas suspeitas de fraude e, portanto, a corroboração de suas crenças pessoais e científicas de viés mais materialista, como foi o caso de Lubbock, Huxley e o próprio Darwin. Outros passaram a integrar a concepção da alma a suas crenças e teses científicas, como foi o caso de George Romanes (BROWNE, 2003). Era entre esses últimos que situava-se Wallace, que a partir de tais influências reformulou seu ponto de vista sobre a evolução humana. Enfraquecendo a teoria da seleção natural, Wallace passou a defender que esta era suficiente como mecanismo explicativo da evolução de todos os demais seres vivos, mas não do homem. No caso desse último, a seleção natural teria influenciado sua evolução somente no sentido da linhagem de espécies ancestrais que conduziram ao gênero humano. Mas o surgimento no mundo natural da espécie humana propriamente dita (ou mesmo de seus ancestrais hominídeos) não poderia ser explicado pela seleção natural. Para tal o autor agora evocava uma explicação sobrenatural: a intervenção ativa de “alguma inteligência superior”: 38 (…)The rapid progress of civilization under favourable conditions, would not be possible, were not the organ of the mind of man prepared in advance, fully developed as regards size, structure, and proportions, and only needing a few generations of use and habit to co-ordinate its complex functions. (WALLLACE, 1870, p. 357-359) Na verdade, tal intervenção sobrenatural não se restringia aos atributos mentais, mas também a algumas características físicas: a pele nua, a postura ereta, a “extrema perfeição” das mãos e órgãos vocais. Mas de qualquer forma, as faculdades mentais se destacam como emblemáticas da unicidade humana: So, those faculties which enable us to transcend time and space, and to realize the wonderful conceptions of mathematics and philosophy, or which give us an intense yearning for abstract truth, (all of which were occasionally manifested at such an early period of human history as to be far in advance of any of the few practical applications which have since grown out if them), are evidently essential to the perfect development of man as a spiritual being, but are utterly inconceivable as having been produced through the action of a law which looks only, and can look only, to the immediate material welfare of the individual or the race. (ibid., p. 357-359) E a conclusão de Wallace não deixa margem a dúvidas: The inference I would draw from this class of phenomena is, that a superior intelligence has guided the development of man in a definite direction, and for a special purpose, just as man guides the development of many animal and vegetable forms. (ibid., p. 357-359.) Essa guinada radical do co-autor da teoria da seleção natural não seria recebida por Darwin sem a previsível indignação, claramente visível em carta escrita ao amigo em 26 de Janeiro de 1870 : But I groan over Man - you write like a metamorphosed (in retrograde direction) naturalist, and you the author of the best paper that ever appeared in the Anthropological Review! Eheu! Eheu! Eheu!15 Esses exemplos ajudam a estabelecer como era o contexto de discussões científicas sobre o tema naquele período. Foco de tamanha polêmica até 15 Citado em Richards, 1989, p. 177 39 mesmo no seio do programa de pesquisa darwinista, a mente humana restava, então, como última cidadela sitiada por incessantes bombardeios evolucionistas. E mesmo entre estes, como vimos, havia os que preferiam salvaguardar a mente das implicações materialistas do darwinismo. Sendo a mente humana a instância mais diretamente relacionada às questões morais, à alma, aos valores religiosos, redobrados foram os esforços para salvá-la das ameaçadoras garras do darwinismo e de seus perturbadores postulados filosóficos. Afinal, a faculdade da consciência - um dos mais importantes atributos da mente - era reivindicada por muitos teólogos influentes como seara exclusiva do dogma cristão, na qual não cabia à ciência emitir opiniões de qualquer tipo, especialmente questionamentos capazes de abalar os alicerces da teologia vigente (ELLEGARD, 1990). Seria nesse inflamado cenário que Darwin, agora imbuído da firme intenção de reforçar e explicitar suas teses sobre a origem do homem, publicaria The Descent of Man (DARWIN, 1998a [1871]) e, em seguida, The Expression of Emotions in Man and Animals (DARWIN, 1998b [1872]). E seria nessas obras que teceria a complexa trama de sua teoria da mente. Trama na qual, proponho-me a demonstrar, os fios das emoções animais com todos os seus coloridos, texturas e matizes formaram impressionantes desenhos. 40 CAPÍTULO 2: A teoria da mente em Charles Darwin e a questão das emoções ESCOLHENDO A PREPOSIÇÃO Em primeiro lugar, agora que nos propomos a analisar a teoria darwiniana da mente é preciso fazer uma pausa para um esclarecimento: não considero correto falar de uma teoria da mente de Charles Darwin. O motivo para essa afirmação é que Darwin nunca realmente sistematizou uma teoria da mente como tal (BURKHART, 1985). Todas as suas teorizações sobre a mente animal e humana podem ser consideradas ramos de sua abrangente teoria evolutiva, pois sua argumentação a respeito de quaisquer aspectos mentais tem sempre como ponto de partida e/ou alvo final a questão da evolução. Tanto no Descent quanto no Expression Darwin deixa clara desde o início sua intenção de, ao longo da obra, demonstrar a relação de continuidade evolutiva entre os animais e o homem quanto a todas as características analisadas. Por esse motivo considero mais apropriado falar em uma teoria da mente em Darwin. Observe-se que a troca da proposição “de” pela proposição “em” não deve ser considerada irrelevante. Enfatizo essa questão para assinalar que entendo como ‘teoria da mente em Darwin’, que também chamarei de ‘teoria darwiniana da mente’ aquela teoria sobre a mente que se pode depreender do todo da obra de Darwin - e, mais especificamente para delimitação de meus estudos, do Descent e do Expression. Isso não equivale, em absoluto, a dizer que o comportamento e a mente eram questões secundárias na obra de Darwin. Seguindo Richards (1989) e Burkhardt (1985), penso que a mente e o comportamento compuseram parte integrante e significativa da própria construção da teoria evolutiva de Darwin. Em artigo publicado na década de 1980, Burkhardt (1985) analisava o fato de que até aquele ano poucos eram os historiadores que haviam se 41 interessado pela questão do comportamento na obra de Darwin. Um dos motivos apontados por Burkhardt como explicativos dessa lacuna seria o fato de Darwin nunca ter procurado estabelecer uma ciência evolutiva do comportamento (inclua-se aí a mente) enquanto tal. Como já foi dito, o trabalho de Robert Richards (1989) veio em grande parte preencher essa falta. O propósito de minha dissertação é - como também já foi dito - preencher , por sua vez, a lacuna deixada por Richards quanto ao lugar particular das emoções na obra de Darwin. A discussão mais específica desse tema será feita em algumas seções mais adiante. Por ora, vejamos como nasceram o Descent e o Expression, e como nestes se delineiam de um modo geral os principais componentes da teoria darwiniana da mente. O DESCENT: NASCIMENTO E CIRCUNSTÂNCIAS Em 1864 Alfred Wallace publicava On The Origin of Human Races (WALLACE, 1864), texto no qual defendia a origem e evolução da espécie humana com base no mecanismo da seleção natural16. Nesse ensaio Wallace rebatia argumentos favoráveis à noção de singularidade mental humana colocados por Charles Lyell em seu Antiquity of Man, publicado um ano antes (LYELL, 1863). Muito satisfeito com a argumentação de Wallace, Darwin, numa carta a Joseph Hooker, referiu-se ao artigo como “contundente, original e altamente convincente”17. Richards, ao contar esse episódio, afirma que Darwin não parecia estar se preparando para mais uma disputa de prioridade. Ao contrário, dispusera-se a passar para Wallace suas anotações reunidas sobre a origem do homem, pois não pretendia, então, publicar qualquer obra 16 Ver página 37 17 “most striking and original and forcible” (citado em Richards, 1989, p. 166) 42 sobre o tema (RICHARDS, 1989, p. 166). Sete anos mais tarde, no entanto, no ano de 1871, Darwin, contrariando sua declaração anterior, lançaria The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (DARWIN, 1998a [1871]). O que mudou? O que fez Darwin optar por finalmente publicar um livro tão volumoso sobre a origem do homem? A resposta parece não ser simples nem única. Como já vimos anteriormente, embora a noção de uma origem comum a todos os seres vivos constituísse um ponto de consenso entre os participantes do programa darwinista, quando se tratava da origem do homem, e mais especialmente da origem da mente humana, nem mesmo entre os darwinistas havia consenso. Richards (1989) afirma que foi no seio dessa polêmica que Darwin lançou, em 1871, o Descent. E sustenta que esse livro foi publicado mais como resposta a seus interlocutores darwinistas do que a seus adversários criacionistas. Um desses interlocutores foi Lyell, cujos argumentos haviam sido inicialmente combatidos por Wallace. Entretanto, outro deles foi o próprio Wallace, que em 1870 - como explicado ao fim do capítulo anterior - mudou radicalmente de visão, passando a defender a idéia de que a origem da mente humana demandava uma explicação sobrenatural18. Essa imprevista reviravolta levou Darwin, exasperado, a escrever a Wallace dizendo que que esperava que o mesmo não estivesse, desse modo, “assassinando de vez o nosso filho”: a teoria da seleção natural (BROWNE, 2003, p. 318). Na verdade, a transformação do pensamento de Wallace forneceu munição para um poderoso adversário do darwinismo: St George Jackson Mivart (ELLEGARD, 1990; BOWLER, 1989; RICHARDS, 1989). Seu livro On The Genesis of Species (MIVART, 1871) foi publicado em janeiro de 1871, poucos dias antes 18 ver página 38 43 do Descent, de Darwin. É provável que tanto Mivart quanto Darwin tenham escrito seus livros tendo como parte importante de suas preocupações de fundo a de antecipar os argumentos que previam encontrar na obra um do outro (BROWNE, 2003; RICHARDS, 1989). Janet Browne também identifica o que chama de “pressão de estórias alternativas” sobre a origem do homem como um dos fatores que mobilizaram Darwin a escrever e publicar o Descent. Entre tais versões alternativas ela aponta o evolucionismo criativo do Duque de Argyll, que ganhava terreno, e a crítica de Francis Galton, primo de Darwin, à teoria da pangênese - tese formulada por Darwin para explicar como surgia a variedade no mundo orgânico (BROWNE, 2003, p. 332). Apesar de Darwin afirmar que levou dois anos para escrever o Descent, Browne (2003) considera que na verdade essa obra levou uma vida inteira para ser produzida. A autora fundamenta sua afirmação declarando que para produzir o texto do Descent Darwin teve que recorrer a todo seu conhecimento acumulado - teórico e prático - de história natural (ibid., p. 326). Além disso, sabe-se que pelo menos desde a década de 1830 Darwin já coletava farto material sobre a origem do homem, incluindo aspectos comportamentais e relativos aos poderes mentais. Esse material existia na forma de anotações, em seus famosos notebooks (BURKHART, 1985; RICHARDS, 1989) Por que Darwin levou tanto tempo, desde suas primeiras anotações sobre o homem, para enfim ousar discorrer abertamente sobre a origem deste? A versão mais ortodoxa para explicar essa demora de Darwin em publicar - que se aplicaria não só ao Descent, mas também ao próprio Origin - postula que um dos principais motivos da aparente postergação de Darwin seria sua atitude de evitar entrar em choque com o pensamento religioso tradicional (MAYR, 44 1998). Essa cautela incluiria, em algumas versões, a preocupação de Darwin em não ferir as crenças e os sentimentos religiosos de sua esposa Emma (DESMOND & MOORE, 2000). Mais uma vez, Richards (1989, p. 101 e 152) discorda dessa interpretação tradicional, e afirma que a alegada demora de Darwin em publicar devia-se principalmente ao fato de que ele esmerava-se em fortalecer e esclarecer os pontos mais frágeis e mais atacados de suas argumentações. Como exemplos desses problemas figuravam a existência de indivíduos estéreis em alguns grupos de insetos, como as formigas e abelhas, e a dificuldade de explicar a evolução do comportamento altruísta humano por meio da seleção natural, entre outros. Para ambos os problemas Darwin recorreu à noção de seleção de grupo, segundo a qual em algumas espécies de animais sociais, incluindo a humana,a unidade sobre a qual agiria a seleção natural seria a comunidade, e não o indivíduo19 (RICHARDS, op. cit.). Mas agora chegava o tempo. Sob a pressão de tantas diferentes versões sobre a origem do homem que enfraqueciam a teoria darwiniana da evolução como fator explicativo, e após formular explicações satisfatórias, Darwin finalmente publicava o Descent. Sua obra diretamente dedicada à explicação da origem biológica do homem enfim se materializava. Suas anotações de décadas agora se viam editadas, parcialmente reformuladas e reunidas num corpo coerente de idéias e argumentos. Após tantas picadas abertas por seus aliados - muitas delas desviando o público dos caminhos pelos quais Darwin almejava conduzir a ciência de seu tempo - era chegado o momento daquele que emprestava seu nome ao programa darwinista falar abertamente sobre o homem. Afinal, Darwin considerava este “o maior e mais 19 Como veremos adiante, a noção de seleção de grupo seria muito importante na estruturação da teoria darwiniana de evolução da moralidade. 45 interessante problema para o naturalista”20. Browne (2003) afirma que desde o início Darwin teria percebido o Descent como um complemento do Origin. E afirma que em seu “livro do homem” Darwin cruzava deliberadamente a última fronteira da doutrina evolucionária que ele e Wallace haviam procurado estabelecer (BROWNE, 2003, p. 325). Com o Descent as teses darwinianas relativas ao animal humano, suas origens e evolução, sua história ancestral, sua natureza mental ganhavam corpo e vida. O DESCENT: ESTRUTURA E ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS Em termos formais, o Descent divide-se em três partes, intituladas, respectivamente: The Descent or Origin of Man (sete capítulos), Sexual Selection (onze capítulos) e Sexual Selection in Relation to Man, and Conclusion (três capítulos). Para efeito de nossos estudos, podemos considerá-lo subdividido em duas partes. A primeira (parte I) apresenta evidências da continuidade física e mental entre o homem e os animais. A segunda (partes II e III) apresenta como um fator importante na evolução das espécies uma nova teoria, a da seleção sexual, mecanismo que explicava a existência e persistência de estruturas a um primeiro olhar contraditórias com a noção de sobrevivência do mais apto, como seriam os casos da cauda do pavão, das galhadas dos alces e das vistosas plumagens dos pássaros machos (CRONIN, 1995). E defende a importância desse mecanismo de seleção sexual na evolução das características físicas e mentais humanas, incluindo as diferenças entre as raças. Para os propósitos do presente estudo, meu foco será na parte I dessa obra, mais especificamente nos capítulos III e 20 “the highest and most interesting problem for the naturalist” - in Correspondence 6: 515, citado em Browne, 2003, p. 325 46 IV, ambos intitulados “Comparação dos poderes mentais do homem e dos animais inferiores” (Comparison of The Mental Powers of Man and The Lower Animals). O motivo dessa escolha é que são estes dois capítulos os que mais aprofundam a discussão da comparação entre as faculdades mentais animais e humanas, assunto tratado nos demais capítulos somente de forma tangencial ou como pano de fundo de outras discussões focais. É nesses dois capítulos aos quais me referi que encontraremos as principais alusões às emoções animais. O capítulo III tem início com a afirmação da indubitável e imensa superioridade mental do homem em relação aos demais animais, mesmo quando são comparados os “selvagens de nível mais inferior” (lowest savages) aos mais desenvolvidos dos antropóides (highest apes) (DARWIN, 1998a [1871], p. 66). Mas logo em seguida Darwin faz a ressalva que, ainda assim, “há um intervalo muito maior no que diz respeito ao poder mental entre um dos peixes inferiores (...) e um dos antropóides superiores do que entre um antropóide e um homem21” (ibid., p. 67). Defende que tais intervalos são preenchidos por infinitas gradações, e afirma, então, que o objetivo desse capítulo é o de “demonstrar que não há qualquer diferença fundamental entre o homem e os mamíferos superiores em suas faculdades mentais22” (ibid., p. 67). Para cumprir esse objetivo, Darwin enumera uma grande quantidade de faculdades mentais (aqui incluídos os instintos, entendidos por ele como atributos mentais) consideradas pelo senso comum e por diversos autores da época como exclusivas do homem. Em seguida, apresenta incontáveis contra- 21 “We must also admit that there is a much wider interval between one of the lowest fishes (…) and one of the higher apes, than between an ape and a man” 22 “My object in this chapter is to show that there is no fundamental difference between man and the higher mammals in their mental faculties” 47 argumentos e evidências de que diversas espécies animais são possuidoras, em maior ou menor grau, da maior parte desse repertório de faculdades. Seu propósito é claro: desarmar as crenças e argumentos criacionistas dos defensores da singularidade mental humana. Como fica exemplificado na comparação acima mencionada entre os selvagens e os antropóides, Darwin enfatiza que reconhece as imensas diferenças entre o homem e os outros animais. Mas como tenaz defensor do que chama de ‘princípio de continuidade’ (resumido na frase atribuída a Lineu “a natureza não dá saltos”), insiste em afirmar que essa diferença não é uma diferença de essência ou tipo, mas meramente uma diferença de grau. Inúmeras são as espécies animais às quais Darwin atribui poderes mentais nesse capítulo: castor, cão, elefante, várias espécies de primatas e insetos, e até a mula, entre outros. Também inúmeras são as faculdades mentais mencionadas: instintos, inteligência, razão, capacidade de imitação, atenção, memória, imaginação, e muitas outras. Dentre essas muitas outras, várias são as emoções listadas: felicidade, terror, ira, amor e outras um tanto mais complexas, que discutirei mais adiante. Ainda no capítulo III Darwin faz um levantamento de aforismos usados por diversos adversários seus como argumentos em defesa da singularidade mental humana. E vai derrubando-os um a um com exemplos de animais que - pretende ter demonstrado - seriam dotados das faculdades mentais ou comportamentos sugeridos por esses aforismos. São estes: capacidade de aperfeiçoamento progressivo, uso de ferramentas, confecção de implementos pra um propósito específico, poder de abstração, formulação de conceitos gerais, auto-consciência, individualidade mental, uso e compreensão de uma 48 linguagem, formação de conceitos genéricos, senso de beleza e até mesmo uma forma rudimentar de “crença em agentes espirituais”. Como exemplo da relevância histórica de alguns desses contra-argumentos darwinianos em resposta aos aforismos então vigentes, temos a contestação da idéia de que somente o homem é capaz de fazer uso de ferramentas. Para desmentir essa afirmação, Darwin baseou-se em observações de outros naturalistas sobre o comportamento dos chimpanzés selvagens, que quebravam castanhas nativas com uma pedra. Tais observações marcavam uma fase embrionária de uma linha de pesquisa que culminaria nas surpreendentes descobertas feitas pela primatóloga Jane Goodall quase um século depois, na década de 1960, sobre o amplo e complexo uso de ferramentas por chimpanzés (GOODALL, 1991). As observações de Goodal, recebidas de início com muita resistência, desempenhariam importante papel na ressurgência da noção de mente animal como tema legítimo de pesquisas científicas após um longo período de uma espécie de eclipse dessa concepção (RIDLEY, 2003) Darwin inicia o capítulo IV declarando que concorda “com o julgamento dos autores que sustentam que de todas as diferenças entre o homem e os animais inferiores23, o senso moral ou consciência é de longe o mais importante24, e afirma que o senso moral, resumido na palavra “deve” (ought) é “o mais nobre de todos os atributos do homem25” (DARWIN, 1998a [1871], p. 23 Não fica clara na obra de Darwin a existência de qualquer critério de classificação que defina que grupos animais seriam considerados ‘animais inferiores’ (lower animals) e quais seriam os ‘animais superiores’ (higher animals). Não é raro que num dado trecho ele inclua uma certa espécie entre os animais inferiores, e noutro trecho refira-se ao mesmo animal como um dos animais superiores. 24 “ I fully subscribe to the judgment of those writers who maintain that of all the differences between man and the lower animals, the moral sense or conscience is by far the most important”. 25 “This sense, as Mackintosh remarks, "has a rightful supremacy over every other principle of human action"; it is summed up in that short but imperious word ought, so full of high significance. It is the most noble of all the attributes of man,” 49 100). Dito isto, explica que pretende verificar “até onde o estudo dos animais inferiores lança uma luz sobre as mais elevadas faculdades psíquicas do homem26” (ibid., p. 100). A partir daí empreende uma investigação da evolução da moralidade a partir de atributos mentais que considera presentes já nos animais, como é o caso do que chama de instintos sociais. Mais uma vez diversas espécies de animais são convidadas a exibir seus poderes mentais, agora ligados à sociabilidade: cavalos selvagens, vacas, coelhos, ovelhas, diferentes aves, focas, macacos, esquilo, pelicano, lobo, cão. E também são muitas as faculdades mentais atribuídas a esses animais: simpatia (sympathy), amor mútuo, “nobre fidelidade” (noble fidelity), afeição parental e filial, e até mesmo a auto-consciência de um cão e a realização de um ato heróico por um pequeno macaco que arriscara a vida para proteger seu dono (ibid, p. 106). Antecipando Freud (sobre quem, segundo RITVO, 1992, Darwin exerceu nítida influência), discorre sobre situações de tensão individual entre impulsos egoístas e altruístas conflitantes, e especula como a espécie humana evoluiria na direção da opção pela conduta, boa parte das vezes, em prol da comunidade. Apresenta uma definição de um “ser moral”, que considera aplicar-se apenas à espécie humana, e postula uma evolução da abrangência moral no homem, desde as fronteiras reduzidas da tribo até uma “simpatia para além dos confins do homem”27, que incluiria nas fronteiras de nossas considerações morais até mesmo os animais ‘inferiores’. Esse capítulo do Descent prepara o leitor para o seguinte, “Sobre o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais durante os tempos primevos e os tempos civilizados” (On The Development of The Intelectual and Moral Faculties 26 “The investigation possesses, also, some independent interest, as an attempt to see how far the study of the lower animals throws light on one of the highest psychical faculties of man”. 27 “sympathy beyond the confines of man” (p. 127) 50 During Primeval and Civlized Times), no qual Darwin passa a dedicar-se mais especificamente a especulações sobre a evolução da moralidade do homem desde sua pré-história. Mas a temática desse capítulo V foge ao escopo de nossos estudos. Analisemos agora um pouco do contexto da publicação da obra seguinte de Darwin, o Expression. O EXPRESSION: NASCIMENTO E CIRCUNSTÂNCIAS Como já foi dito, o Expression fora originalmente concebido como parte do próprio texto do Descent, mas Darwin optou por lançar esse texto em volume independente, tanto por motivo de espaço quanto por julgar mais conveniente separar os assuntos (BROWNE, 2003; RICHARDS, 1989). Como continuação imediata do Descent, o ambiente de idéias no qual esse livro foi lançado foi basicamente o mesmo que aquele no qual surgiu a obra antecessora. Mas podemos acrescentar, aqui, algumas informações pertinentes sobre os motivos que levaram Darwin a escrever o Expression, além de influências culturais e experiências pessoais do autor que marcaram alguns aspectos peculiares desse livro. Janet Browne (1985, p. 307) comenta que Darwin, com sua incansável mente científica, transformava em objetos de estudo até mesmo os eventos domésticos cotidianos. A autora aponta que Darwin teria tomado a decisão de iniciar uma pesquisa sobre as expressões emocionais a partir de um evento deflagrador: o nascimento de seu filho William, em 1839. O registro do comportamento emocional de William e também dos demais filhos se estendeu a crianças de inúmeras outras famílias. Para isso Darwin recrutou um 51 verdadeiro exército de mães voluntárias, às quais creditava total autoridade para falar sobre o comportamento das crianças, da mesma forma que reconhecia a competência dos geólogos ou dos horticultores em seus campos específicos de estudo. O estudo das expressões emocionais e temas afins era objeto de interesse naquele período, como transparece na introdução do próprio Expression, no qual Darwin cita várias obras publicadas sobre o assunto desde o início do século XIX (essa questão será melhor detalhada na próxima seção). Um dos recursos aos quais Darwin recorreu foram as fotografias, das quais fez uso abundante nessa obra. Tão ampla utilização de material fotográfico constituía uma novidade nos trabalhos de Darwin, mas também aqui ele se movia no compasso de seu tempo. Nas últimas décadas do século XIX a fotografia vinha experimentando uma grande expansão como forma de manifestação artística, e as ilustrações fotográficas conquistavam um espaço crescente na construção do conhecimento (BROWNE, 2003, p. 363). Assim, nesse trabalho de Darwin, como nos de outros autores do período, as pranchas fotográficas se candidatavam ao status de evidências científicas. Inúmeras são as fotografias, ou desenhos baseados nas mesmas, presentes no Expression. Essas fotos são protagonizadas por homens e mulheres, loucos ou sãos, crianças e adultos, humanos e animais em diferentes posturas corporais ou expressões faciais, indicativas das mais variadas emoções. A reconhecida qualidade técnica das fotografias apresentadas não impediu, porém, que Darwin as manipulasse conforme seus propósitos. Browne (2003, p. 368) comenta que as cartas que ele escreveu aos artistas seus colaboradores solicitando alterações convenientes aos seus argumentos “revelavam muito a 52 respeito da teoria da expressão emocional que ele estava tentando estabelecer”. De qualquer maneira, essas ilustrações parecem ter contribuído de forma significativa na palatabilidade do livro junto ao público: com cerca de nove mil cópias vendidas nos primeiros quatro meses, o Expression superou muito o Origin em desempenho de vendas no mesmo intervalo de tempo (ibid., p. 368). O EXPRESSION: INTERLOCUTORES E ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS Na Introdução do Expression Darwin anuncia seus interlocutores. Justificando a relevância da pesquisa que apresentará no texto do Expression, Darwin elogia alguns pontos e critica outros nas obras de vários autores, enfatizando as lacunas. Tais autores são, entre outros, Alexander Bain, Pierre Gratiolet e Guillaume Duchenne. Mas seu mais importante interlocutor na Introdução parece ter sido Sir Charles Bell, cuja obra Anatomy and Philosophy of Expression teve sua primeira edição publicada em 1806, e a segunda em 1844. Darwin tece elogios iniciais à obra de Bell, cuja importância considera subestimada. Mas em seguida aponta lacunas no estudo deste quanto aos músculos envolvidos nas expressões. Afirma que, com a exceção de Herbert Spencer, todos os autores que escreveram sobre as expressões pareciam convencidos de que as espécies, incluindo o homem, já teriam vindo à existência em sua forma atual (DARWIN, 1998b[1872], p. 17). Darwin anuncia, então, sua intenção de demonstrar que as teses de tais autores eram equivocadas. Chamando a atenção do leitor para o fato de que a obra de Bell tinha como propósito estabelecer a maior distinção e distância possíveis entre 53 o homem e os “animais inferiores”, Darwin proclama um objetivo oposto: demonstrar a relação de ancestralidade comum entre o homem e os demais animais a partir do estudo das expressões emocionais (DARWIN, 1998b [1872], p. 17 a 19). Ainda no capítulo introdutório do Expression, Darwin explicita sua metodologia de trabalho. Seis são os tipos de fontes de observações direta ou de imagens aos quais declara ter recorrido para estudar as expressões emocionais: 1) bebês; 2) loucos; 3) as fotos de expressões obtidos por galvanização de músculos faciais de um homem idoso, fornecidas pelo já mencionado dr. Duchenne; 4) retratos pintados e esculturas feitas por artistas renomados; 5) observação comparativa de expressões emocionais em membros de diferentes raças humanas; e, finalmente, 6) expressões de animais. Quanto a essa última fonte de informação, Darwin ressalta sua especial importância, por considerar que a observação das expressões animais proporciona “a mais segura base para generalizações a respeito das causas, ou origem, dos vários movimentos de expressão”. Isso porque, defende ele, ao observar os animais não é provável que sejamos vítimas de uma “tendenciosidade em nossa imaginação; e podemos nos sentir seguros de que suas expressões não são produtos de convenções28” (DARWIN, 1998b [1872], p. 24). Essa última fonte de observações à qual Darwin recorreu na redação do Expression será a mais pertinente para os propósitos de nossos estudos, pois diz respeito às emoções que Darwin acreditava ser compartilhadas por homem e animais. 28 “Sixthly, and lastly, I have attended (...) to the expression of the several passions in some of the commoner animals; and this I believe to be of paramount importance (…) as affording the safest basis for generalization on the causes, or origin, of the various movements of expression. In observing animals, we are not likely to be biased by our imagination; and we may feel safe that their expressions are not conventional” 54 Seguem-se à Introdução os capítulos I e II do livro, ambos intitulados General Principles of Expression. Nesse dois capítulos Darwin relaciona o que chama de “princípios gerais de expressão”. São três os princípios definidos por Darwin: 1) ‘princípio dos hábitos associados úteis’; 2) ‘princípio da antítese’ e 3) ‘princípio da ação direta do sistema nervoso. (DARWIN, 1998b [1872]). Uma descrição ou discussão mais aprofundada de tais princípios fugiria ao escopo do presente trabalho no momento. O que importa para nós a esse respeito é que essa formulação de apenas três “princípios gerais” nos quais deve ser possível abrigar toda a gama de expressões emocionais animais e humanas fortalece ainda mais a tese de Darwin de que todos os animais, incluindo o humano, comungariam de uma relação de ancestralidade comum. Na visão de Darwin, podemos dizer que as expressões emocionais são eminentemente físicas: envolvem posturas e combinações de configurações musculares temporárias. Mas refletem condições mentais: as emoções propriamente ditas, enquanto estados internos experimentados por um agente ou sujeito (BROWNE, 2003). Nesse sentido, podemos interpretar as expressões emocionais como processos situados na interface entre o físico e o mental, ou, em outras palavras, como evidências de uma origem comum, física e mental, entre animais e homens. COMPONENTES DA MENTE EM DARWIN Que tijolos formam o edifício do que poderíamos chamar de teoria da mente em Darwin? Quais os componentes principais da mente animal e humana na visão desse naturalista? Que atributos mentais possuem maior importância em sua argumentação em defesa da continuidade mental entre 55 animais e homem? Para discutir essa questão tomarei parcialmente como base a análise feita por Richards (1989). Esse autor sustenta que são três os atributos mentais mais importantes na construção do pensamento darwiniano a respeito da mente e do comportamento inseridos no processo evolutivo: os instintos, a razão (incluindo inteligência) e a moral. E justifica sua escolha, afirmando que: 1) esses tópicos desempenhavam papéis dominantes nas teorias evolutivas gerais dos cientistas estudados; 2) tais temas eram conceitual e logicamente articulados uns com os outros pelos teóricos. O instinto era tido como “paradigma de comportamento evoluído”, e a razão constituía o passo seguinte do desenvolvimento filogenético progressivo. O comportamento moral, finalmente, teria sido “construído por Darwin, Spencer e seus discípulos como uma espécie de instinto guiado pela razão” (RICHARDS, 1989, p. 8). Mas Richards alega, ainda, um terceiro motivo para a escolha dessas três faculdades mentais. Ele considera que esses três tópicos requerem uma análise histórica que conecte de forma mais direta o trabalho científico de um indivíduo com as características mais abrangentes de seu ambiente intelectual - filosóficas, religiosas, sociais e psicológicas. (RICHARDS, 1989, p. 8) Na continuação desse capítulo discorrerei inicialmente de forma a mais abreviada possível sobre cada um desses três componentes da mente darwiniana. Não tenho qualquer intenção de questionar as afirmações e teses de Richards sobre a inserção ou importância do instinto, razão ou moral na obra de Darwin. Meu objetivo é, sim, como já foi declarado, acrescentar mais um componente da teoria da mente em Darwin, que considero subvalorizado pela obra supracitada de Richards: as emoções. Esse atributo mental, pretendo 56 demonstrar ao fim desse capítulo e ao longo de todo o seguinte, gozava também de significativo status na obra de Charles Darwin. Além disso, tal atributo era articulado com os outros três temas com a mesma freqüência e relevância com que cada um destes mesclava-se e interagia com os demais enquanto faculdades mentais. Em suma, para cada uma das justificativas apresentadas por Richards para sua seleção temática, as emoções cumprem, a meu ver, os requisitos necessárias para figurar como componentes fundamentais da teoria darwiniana da mente. MENTE E COMPORTAMENTO EM DARWIN: INSTINTO Segundo Agness Heller (1983, p. 13), o conceito de instinto é um dos mais ideológicos com que a ciência tem desde sempre operado, e os mesmos fatos empíricos e experimentais têm dado origem às mais diversas teorias do instinto. Certamente trata-se de um conceito polêmico, e na história das ciências o termo tem sido usado em tantos sentidos diferentes, que alguns autores o consideram um conceito minado, propondo mesmo que seja abandonado (DAWKINS, 1989). De qualquer forma, a idéia de que existem padrões comportamentais inatos no mundo animal parece ser muito antiga (RIDLEY, 2003). Richards (1989, p. 20) afirma que remonta aos tempos de Galeno, e que nos séculos XVII e XVIII vigorava um intenso debate quanto ao comportamento animal ser inato ou aprendido. Essa discussão perdurou no século XIX, e muitos foram os pensadores que exerceram influência ou foram interlocutores de Darwin na formulação de sua teoria dos instintos. Entre os mais antigos Richards (1989) menciona os transformistas franceses Jean-Baptiste Lamarck e Pierre-Jean Cabanis, além 57 do britânico Erasmus Darwin, avô de Charles. Em diferentes aspectos e proporções, esse três precursores teriam contribuído com a noção dos instintos como hábitos herdados. Outro autor importante foi Edward Blyth, de quem, porém, Darwin discordava quanto à atribuição dos instintos unicamente aos “brutos”, cabendo ao homem um aprendizado meramente a partir dos sentidos (RICHARDS, 1989, p. 107). Richards menciona, ainda, a importância da obra Introduction to Entomology, publicada em 1818 pelo reverendo Wiliiam Kirby e William Spence, que lançaram luz a respeito do instinto em insetos (RICHARDS, 1989, p. 139). Mas especialmente influente e esclarecedora teria sido a leitura de Dissertations on Subjects of Science concerned with Natural Theology, obra publicada em 1839 e de autoria de Henry Lord Brougham, estadista e cientista amador. Isso porque inicialmente Darwin interpretava a origem de todos os instintos como herança de hábitos, mas a argumentação teológica de Brougham contra essa concepção lamarckiana teria aberto os olhos de Darwin para outra possibilidade. Assim, na primeira edição do Origin Darwin já defendia que os instintos tinham sua origem principalmente no mecanismo de seleção natural (RICHARDS, 1989, p. 137). Os instintos tinham grande importância teórica como elo evolutivo que unia as mentes dos animais inferiores à humana (RICHARDS, p. 8), e também como características mentais originadas pela seleção natural ou em decorrência de hábitos herdados. Além disso, os instintos reforçavam o repertório de evidências a favor da teoria da origem comum. Era o caso de instintos amplamente presentes num grupo taxonômico maior, como os mamíferos ou os primatas, por exemplo. Mas os instintos são também 58 importantes, em Darwin, pela sua articulação com outros atributos mentais, como a moral e a razão, que examinaremos em seguida. MENTE E COMPORTAMENTO EM DARWIN: RAZÃO E INTELIGÊNCIA No período moderno, na voz de René Descartes, a razão experimentava seu coroamento como marca distintiva da singularidade mental humana, e no século XIX, essa faculdade permanecia detentora de grande status, figurando como o mais avançado passo evolutivo da mente - animal ou humana (RICHARDS, 1989, p. 8). Richards (op. cit., p 109) aponta a influência do pensamento de David Hume sobre Darwin na noção de que o intelecto racional representava uma modificação do instinto, e não o seu oposto. E ressalta que, diferindo de alguns autores do período, Darwin não via a posse de um cérebro como requisito essencial para a presença de uma mente racional. Isso ficava claro na posição sustentada por Darwin, segundo a qual até os insetos eram dotados em algum grau de inteligência e razão. Quanto a esse ponto - a existência de uma gradação dos atributos mentais que parecia ir dos seres mais puramente instintivos aos mais predominantemente racionais em diferentes dosagens, Darwin estava em concordância com alguns autores do período. Dentre eles Richards cita os já mencionados Blyth, Brougham, Kirby e Spence, além do teólogo natural John Fleming e.do reverendo Algernon Wells. Em 1834 o reverendo Wells publicou o ensaio On Animal Instinct, obra que foi lido cuidadosamente por Darwin (RICHARDS, 1989, p. 133). Nesse livro, defendia que os animais e o homem eram dotados de instinto e razão, mas tanto os humanos quanto animais tornavam-se menos instintivos e mais racionais à medida que entravam em contato com a sociedade humana 59 civilizada. Essa noção de um avanço da inteligência na direção da civilização parece ter constituído um pano de fundo quase que onipresente no pensamento dos mais diversos autores do século XIX. Certamente estava presente nas idéias de grades expoentes do darwinismo, tais como Darwin29, Huxley, Wallace e Spencer. O termo savage, por exemplo é encontrado com grande freqüência tanto no Descent como no Expression, designando povos com estilos de vida primitivos, pertencentes a raças consideradas muito inferiores em desenvolvimento mental em relação ao homem europeu, ápice da evolução da vida sobre a Terra. Como mais um ramo da árvore darwiniana da vida, inserido numa escala de atributos mentais que tinha em sua base as formas orgânicas mais primitivas, o homem macho branco europeu fulgurava, assim, como o menos instintivo dos animais (mas, ainda assim, um animal). E era sua racionalidade superior que lhe conferia seu brilho mental sem par no mundo natural. MENTE E COMPORTAMENTO EM DARWIN: MORAL A teoria moral de Darwin é de importância central em sua construção de uma teoria evolutiva capaz de abarcar a mente e o homem. Como já vimos, a versão darwiniana da origem do homem constituía um problema de jurisdição no qual a ciência entrava em atrito com a religião (BOWLER, 1989; BROWNE, 2003; ELLEGARD, 1990; MAYR, 1998), e a origem da mente humana era tema especialmente sujeito a disputas. Dentre os atributos da mente humana, a questão da moralidade era sem dúvida a que mais violentamente acirrava as rusgas entre os diferentes atores envolvidos na discussão da possibilidade de 29 Na página 101 do capítulo seguinte há uma seção na qual farei uma breve análise dessa relação entre processo civilizatório e evolução da inteligência na concepção darwiniana. 60 uma articulação entre o natural e o humano. Acima de todas as outras características mentais, era a moral aquela mais diretamente implicada nas fronteiras da religiosidade. Talvez seja por esses motivos que, segundo Richards (1989, p. 109), no século XIX a discussão científica a respeito da continuidade mental estava centrada no senso moral . Dessa forma, foi nesse campo que aqueles autores de orientação religiosa que defendiam a singularidade mental humana absoluta concentraram seus argumentos e ações (ELLEGARD, 1990). Na verdade, mesmo entre os darwinistas a moral era um ponto delicado. Alfred Wallace (1870) via no complexo senso moral do homem uma evidência de sua singularidade mental, de origem divina. Ainda mais radical, Charles Lyell (1863) defendia uma descontinuidade mental entre o homem e os grandes antropóides. Esse autor.propunha a adoção do senso moral como critério de classificação taxonômica, e com base nisso julgava justificado que o homem fosse agraciado, do ponto de vista taxonômico, com nada menos que um reino próprio (RICHARDS, 1989, p.164). Dessa forma, a despeito de sua já então reconhecida origem física em comum com os demais primatas, o homem manter-se-ia a uma distância segura do restante do mundo natural. Separado dos animais, era detentor de um reino exclusivo no qual e do qual imperava, senhor soberano, com sua racionalidade superior e a moralidade única que o distinguia e elevava acima do restante da criação. Sendo a moralidade, portanto, um tema especialmente caro a tantos pensadores, os mesmos não mediram esforços em suas articulações para manter essa questão a salvo da teia teórica e filosófica que Darwin e alguns de seus colaboradores, dentre os 61 quais John Lubbock e Thomas Huxley (ELLEGARD, 1990), teciam ao redor da já fragilizada noção da singularidade mental humana. Nessa teia inescapável com a qual o evolucionismo darwiniano ia pouco a pouco envolvendo o animal humano, a moral, tão aguerridamente defendida pelos pensadores de viés religioso, constituiu durante muito tempo um dos fios mais perigosos. Era nesse tênue fio que se debatia mais vigorosamente a tão fustigada noção de singularidade humana. Estrategista habilidoso, Darwin percebeu a necessidade de edificar uma explicação naturalística convincente para a origem do senso moral. E elaborou uma teoria que foi passo a passo tornando-se sofisticada e robusta (RICHARDS, 1989, p. 110). Um ponto especialmente difícil para o estabelecimento de uma origem biológica para o senso moral era a questão do comportamento altruísta, que desafiava a teoria da seleção natural. Isso porque o conceito básico de seleção natural dizia respeito a um mecanismo que atuava no nível do indivíduo, com base na aquisição adaptativa de vantagem competitiva de uns indivíduos sobre outros na luta pela existência (RICHARDS, 1989, p. 121). Depois de muito ler, investigar, refletir e amadurecer seu pensamento sobre o tema, Darwin chegou a uma solução bastante satisfatória: a noção de seleção de grupo (BOWLER, 1989, p. 235). Essa concepção, bem desenvolvida no capítulo IV do Descent, lograva oferecer uma explicação naturalística para o altruísmo através de um deslocamento de eixo. Nos animais sociais (inclusive o homem) a unidade sobre a qual a seleção natural passava a incidir era agora, em muitos casos, não mais o indivíduo, mas o grupo. No que dizia respeito ao homem, comportamentos que favoreciam a comunidade conferiam maior vantagem adaptativa aos indivíduos, pois a pressão de expectativas do grupo social 62 tornava-se poderoso fator seletivo. Aqui entravam em cena os chamados ‘instintos sociais’, que em muitas situações entravam em conflito com os instintos competitivos, ligados a uma satisfação mais direta dos impulsos de sobrevivência individual30. A obediência a esses instintos sociais resultava em uma sensação posterior de prazer, e o não-cumprimento dos mesmos implicava em dor moral. (DARWIN, 1998a [1871], p. 100-131) Podemos observar aí, mais uma vez, como o pensamento de Darwin interagia e, nesse aspecto, entrava em sintonia com o ethos vitoriano que, se por um lado promovia a afirmação do indivíduo (GAY, 1999), por outro submetia esse mesmo indivíduo a um monitoramento social e moral rigoroso e permanente. Em Darwin, assim, o comportamento moral verdadeiro articulava o componente mental da moral com os do instinto e da razão (RICHARDS, 1989, p. 8). É verdade que Darwin reservava exclusivamente ao homem o status de um “ser moral” (moral being) legítimo, e afirmava que o senso moral provavelmente proporcionava “a melhor e mais elevada distinção entre o homem e os animais inferiores31 (DARWIN, 1998a [1871], p. 131). Mas na concepção darwiniana esse senso moral, embora exclusivamente humano, emergia de raízes biológicas bem definidas: os instintos sociais, presentes até mesmo em alguns insetos, como as abelhas e as formigas. A tão aclamada faculdade mental da consciência moral era, assim, o resultado natural do desenvolvimento dos instintos sociais em uma mente mais complexa: a mente humana. Uma mente capaz de fazer uso da razão para antecipar as 30 Não é difícil perceber aqui a provável influência que essa noção darwiniana de conflitos entre os instintos sociais e os competitivos deve ter desempenhado sobre a elaboração dos conceitos de princípio do prazer e princípio da realidade, assim como da instância do superego, em Freud. 31 “The moral sense perhaps affords the best and highest distinction between man and the lower animals” 63 conseqüências prováveis de seus atos e optar pelo domínio das paixões, um poderoso imperativo moral na Inglaterra do século XIX. Em suma, no discurso darwiniano o senso moral pode ser entendido como um processo de refinamento dos instintos sociais através do exercício de uma racionalidade superior. Em outras palavras, a moralidade decorria de uma complexa operação mental, na qual o instinto era guiado pela razão (BOWLER, 1989, P. 236; ELLEGARD, 1990, P.327; RICHARDS, 1989, p. 8). Vimos, até agora, como os atributos do instinto, da razão e da moral - eleitos por Richards (1989) como os principais e mais pertinentes componentes das teorias evolucionistas da mente e comportamento no século XIX - eram articulados na teoria darwiniana da mente. A partir de agora voltaremos nosso olhar para as emoções, um atributo mental pouco apreciado nas análises de Richards e que considero de importância fundamental na concepção da mente em Darwin. VIDA INTERIOR NO SÉCULO XIX: UM TEMPO PARA AS EMOÇÕES Segundo Peter Gay (1999), desde a Antiguidade o desnudamento dos sentimentos era uma prática sedutora, embora muitas vezes inquietante. Gay traça a trajetória dessa postura desde a célebre frase no pórtico do templo de Delfos, “Conhece-te a ti mesmo”, passando por Sócrates, com seu afastamento do programa metafísico e cosmológico em direção a uma compreensão da condição humana, proposta reafirmada pelo poeta neoclássico britânico Alexander Pope já no século XVIII (GAY, 1999, p. 14). O historiador Keith Thomas, por sua vez, declara, em O Homem e o Mundo Natural, que a genealogia do ‘homem de sentimento’ remonta aos teólogos latitudinários do 64 período da Restauração (THOMAS, 2001, p. 209). Nessa obra de história das mentalidades, Thomas analisa as mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais ocorridas ao longo dos trezentos anos que inauguraram a modernidade, de 1500 a 1800. Esse autor observa que “a metade do século XVIII presenciou um culto da sensibilidade, uma voga das lágrimas e uma ampla aceitação por parte das classes médias do princípio de que transmitir felicidade é a característica da virtude. A bondade e a benevolência passaram a ser ideais oficiais” (2001, p. 210) Entretanto, se essa ode ao sentimento tem origens históricas distantes, o século XIX iria conferir seus próprios ingredientes e temperos, suas receitas particulares para essa atitude. Analisando a experiência burguesa no período vitoriano, Peter Gay enfatiza a preocupação do século XIX com o “eu”, a valorização da auto-exploração, uma intensa e por vezes desmedida dedicação à introspecção que esse autor julga que “chegava à neurose” (GAY, 1999, p. 11). Gay (op. cit., p. 22) sustenta que aquilo que os vitorianos trouxeram de novidade para essa proposta foi a difusão e maior democratização dessa atitude introspectiva. O auto-conhecimento, tão valorizado nas sociedades burguesas de então, implicava um insaciável escrutínio interno, uma jornada - ao mesmo tempo arriscada e sedutora - de exploração das nuanças e sutilezas emocionais pelas quais navegava o “eu”. Dessa forma, o chamado ‘burguês comum’ gradualmente juntava-se em massa à peregrinação ao mundo interior - com diários íntimos, confissões escritas, cartas confidenciais, missivas de amor, ruminações religiosas. Na música, a ordem do dia era o aprendizado do ouvir em silêncio e de comover- se até as lágrimas com os enredos sentimentais das óperas, o êxtase 65 emocional propiciado pela música instrumental dos concertos. Na literatura, o culto ao “eu” se manifestava nas abundantes narrativas ficcionais em primeira pessoa. O romance - gênero anteriormente considerado de qualidade duvidosa - agora ascendia ao status de obra de arte e instrumento de aprimoramento moral. Os romancistas orgulhavam-se de exibir sua sensibilidade psicológica, e proliferavam tanto estórias de amor populares quanto textos mais densos, que exploravam a profundidade psicológica e emocional das personagens. Nas artes plásticas muitos artistas desnudavam seu ser oculto em auto-retratos (GAY, 1999). Na arena filosófica, os românticos, com sua proposta de reencantamento do mundo, engajavam-se como “poetas, profetas e propagandistas do coração desvelado no século XIX”, e suas atitudes modelaram pelas próximas décadas a percepção que a burguesia tinha do “eu” (GAY, 1999, p. 49). Com toda a diversidade que caracterizava esse movimento - até porque constava entre suas premissas e bandeiras a afirmação da individualidade - os românticos partilhavam de um elemento comum: o voltar-se para o interior da alma. Fazendo a ressalva de que “o século XIX não inventou a emoção amorosa”, Gay (op. cit., p. 113) afirma que a novidade que deu aos românticos uma importância duradoura foi “a afirmativa corajosa de que o jogo das emoções era aceitável, e até mesmo necessário para que se alcançasse a plena humanidade”. O período vitoriano foi, em suma, marcado, da perspectiva burguesa, por essa viagem da alma pelas entranhas do “eu”. E a bandeira dessa jornada de auto-exploração, dessa obra de cartografia interna era o coração desvelado, a possibilidade e o compromisso de edificar a experimentação de toda uma gama 66 de emoções intensas. Era com esse propósito que içavam-se as velas do “eu”, e era à navegação por essas paragens e paisagens emocionais que aspiravam os ideais românticos daqueles tempos. Foi nesse ambiente cultural tão propício à valorização da vida interior em sua dimensão emocional que nasceu e floresceu a teoria darwiniana da mente. É essa dimensão emocional na obra de Darwin que pretendo analisar mais diretamente agora, sob o enfoque das emoções enquanto faculdades mentais compartilhadas entre os animais e o homem em decorrência de sua origem biológica comum. DELIMITANDO AS EMOÇÕES NA OBRA DE DARWIN Para dar início à nossa análise é preciso que seja aqui colocada uma indagação metodológica que me acompanha desde o princípio dessa dissertação: como decidir que atributos mentais devem ser entendidos como emoções? Afinal, a definição do que é uma emoção e a delimitação de que faculdades mentais devem ser consideradas emoções são até hoje questões polêmicas (Ledoux, 2001) Uma vez que o propósito do presente trabalho não é fazer um estudo científico ou filosófico atualizado das emoções, mas sim uma abordagem historiográfica do status das emoções animais na obra de Darwin, penso que o primeiro passo seja ouvir o que o próprio autor tem a dizer a respeito de sua metodologia. No capítulo III do Descent, Darwin argumenta pela adoção de critérios próprios para a definição das categorias mentais com as quais trabalhará: As no classification of the mental powers has been universally accepted, I shall arrange my remarks in the order most convenient for my purpose; and will select those facts which have struck me most, with the hope that they may produce some effect on the reader. (DARWIN, 1998a [1871], p. 67) 67 Darwin não explicita, no entanto, seus critérios para classificação das faculdades mentais, e na verdade suas classificações nesse sentido são um tanto assistemáticas e, não raro, incoerentes. A única alusão a um processo de definição de algum atributo mental nas duas obras analisadas é encontrada no início do Expression, e diz respeito ao termo “sentimentos” (feelings), do qual Darwin faz uso em alguns momentos. Nessa passagem, em uma nota de rodapé, Darwin recorre a uma definição estabelecida por Herbert Spencer, que ele parece aprovar: Mr Herbert Spencer (Essays, second series, 1863, p. 138) has drawn a clear distinction between emotions and sensations, the latter being “generated in our corporeal framework”. He classes as feelings both emotions and sensations. (DARWIN, 1998b [1872], p. 33) Como se pode perceber, nesse trecho Darwin oferece uma definição vaga de sensações (sensations) e outra ainda mais incompleta de sentimentos (feelings) . Mas não apresenta qualquer definição de emoções (emotions). Diante dessa ausência de qualquer sistematização das categorias mentais na obra de Darwin, optei por estabelecer uma hierarquia para decidir quais atributos mentais ao longo dos textos serão considerados emoções. Vale ressaltar que todas as emoções abaixo listadas são, segundo Darwin, comuns aos homens e animais: 1) Quaisquer faculdades às quais Darwin se refira explicitamente como emoções, independente da denominação ser ou não coerente com o senso comum ou compatível com classificações atuais. Com base nesse critério - que considero o mais seguro - uma busca sistemática em todo o texto do Expression e nos capítulos III e IV do Descent resultou em quarenta e nove 68 emoções e suas variantes32: 1-Afeição (affection) [E,346]; 2-afeição materna (maternal affection) [D,71]; 3-alegria (joy) [E,71]; 4-ambição (ambition) [E, 260]; 5-amor (love) [D,71; E,119]; 6-amor ardente (ardent love) [E,92]; 7-amor materno (maternal love) [E,82]; 8-auto-confiança (self-complacency) [D,72]; 9- astúcia (slyness) [E, 260]; 10-aversão a zombarias (dislike being laughed at) [D,72]; 11-bondade (kindness) [D, 72]; 12-ciúmes (jealousy) [D, 72; E, 260]; 13- coragem (courage) [D,71]; 14-culpa (guilt) [E, 260]; 15-deleite em provocar (delight in teasing) [D,72];18-demanda por aprovação ou elogios (love approbation and praise) [D,71];19-desconfiança (suspicion) [D,70]; 20-descontentamento (discontentment) [D,72]; 21-desejo de ser amado (desire to be loved) [D,72]; 22-dissimulação (deceit); [D,71; E,260]; 23-dor (pain) [E,346]; 24-fidelidade (fidelity) [D,72] ; 25-ganância (avarice) [E, 260]; 26- humildade (humility) [E, 260]; 27-humor, bom ou mau (ill-tempered X good- tempered) [D,71]; 28-humor, senso de (sense of humour) [D,73]; 29-inveja (envy) [E,260]; 30-ira (rage) [D,71;E,77]; 31-magnanimidade (magnanimity) [D, 73]; 32-medo (fear) [E,70]; 33-modéstia (modesty) [D, 73]; 34-pesar (grief) [D, 72; E,216]; 35-orgulho (pride) [D, 72]; 36-paixão (passion) [E,235]; 37-perplexidade (astonishment) [E,283]; 38-raiva (anger) [E,71,84,90]; 39-regozijo (rejoice) [D,71]; 40-rivalidade (rivalry) [E,92]; 41-rivalide sexual (emulation) [D,72]; 42-simpatia (sympathy) [D,72; E,215]; 43-sofrimento (suffering) [E,77]; 44-terror (terrror) [D,70]; 45-timidez (timidity)[D,71]; 46-triunfo (triumph) [D, 71,90; E,92]; 47-vaidade (vanity) [E, 260]; 48-vergonha (shame) [D, 72]; 49-vingança (revenge)[D, 71] 32 As letras e números em colchetes referem-se, respecitivamente, à obra e à página dessa obra de onde foi retirada a informação. D = Descent; E = Expression. 69 2) Em algumas passagens Darwin refere-se a conjuntos mistos de faculdades mentais que incluem as emoções, sem diferenciar umas de outras com clareza. Nesses casos optei pelo mero bom senso pessoal para efetuar uma garimpagem seletiva e decidir quais, dentre os atributos listados, poderiam ser entendidos como emoções: . “Emoções e faculdades mais intelectuais” (more intelectual and moral faculties): 50-excitação (excitement) , 51-maravilhamento (wonder) e 52-tédio (ennui)33. [Descent, p. 73] . “Várias emoções e desejos” (various emotions and desires): 53-irritação (vexation)34 [Expression, p. 128] 3) Estados mentais amplamente considerados como emoções pelo senso comum e/ou literatura especializada, tais como: 54-nojo (disgust); 55- tristeza (sadness)35. AS EMOÇÕES E SUA RELAÇÃO COM INSTINTO, RAZÃO E MORAL: A SIMPATIA Para uma melhor compreensão da importância das emoções animais na teoria da mente em Darwin e de como as emoções interagem com os demais componente da vida mental, elegi um atributo capaz de sintetizar a 33 Dessa lista optei por excluir a curiosidade (curiosity) 34 Dessa lista optei por excluir a satisfação (satisfaction) 35 Em muitas obras da literatura especializada esses dois estados mentais são considerados “emoções básicas”, além de quatro outros explicitamente considerados emoções por Darwin: alegria, medo, surpresa e raiva (ver Ekman, 1994) 70 complexidade e profundidade do tema. Refiro-me à faculdade da simpatia36 (sympathy). Exploraremos um pouco esse atributo mental nessa seção. Para começar, quero defender que, independente de quaisquer discussões atuais sobre a classificação desse estado mental, o fato é que Darwin considerava a simpatia uma emoção. Para dissipar quaisquer questionamentos a esse respeito, podemos ouvir o próprio Darwin. Vejamos primeiramente o 8o capítulo do Expression: Sympathy appears to constitute a separate or distinct emotion, and it is especially apt to excite the lacrymal glands (DARWIN, 1998b [1872], p. 215, itálicos meus) (…) as several of our strongest emotions - grief, great joy, love, and sympathy - lead to the secretion of tears, it is not surprising that music should be apt to cause our eyes to become suffused with tears, especially when we are already softened by any of the tenderer feelings (ibid., p. 216, itálicos meus). Como se pode ver, nesses dois trechos, nos quais discute a tendência às lágrimas promovida pelo sentimento de simpatia, Darwin refere-se a esse atributo mental como “uma emoção separada ou distinta”, ou ainda como uma das “mais fortes emoções”, ao lado de outras como o pesar, a alegria e o amor. Agora observemos uma frase presente no quarto capítulo do Descent: The all-important emotion of sympathy is distinct from that of love. A mother may passionately love her sleeping and passive infant, but she can hardly at such times be said to feel sympathy for it. (DARWIN, 1998a [1871], p. 109; itálicos meus) 36 Aqui o termo simpatia não deve ser entendido em sua acepção mais comum, de mera aparência ou atitude agradável aos olhos do outro. Estou tomando o termo em uma acepção ampla, como tradução do termo simpathy, em inglês. Essa opção tem sido adotada em recentes traduções de qualidade, como a de Coetzee, 2003, feita por José Rubens Siqueira. Para melhor explicação desse significado mais amplo do termo simpatia, traduzo aqui a explicação do verbete sympathy, do Randomhouse Unabridged Dictionary: “SIMPATIA (SYMPATHY), COMPAIXÃO (COMPASSION), PIEDADE (PITY), EMPATIA (EMPATHY) todos denotam a tendência, prática, ou capacidade de compartilhar os sentimentos dos outros, especialmente seu distresse, pesar, ou desejos não realizados. SIMPATIA é o mais abrangente desses termos, significando uma afinidade generalizada em relação aos sentimentos de outra pessoa, não importa qual a natureza desses sentimentos.” 71 Aqui a simpatia é mais uma vez entendida como uma emoção, e das mais importantes. Essa emoção é abordada nessa passagem como conteúdo mental e experiência emocional, e embora Darwin não ofereça uma definição, procura diferenciá-la de outra importante emoção: o amor. Prossigamos nessa investigação, observando uma passagem do Descent na qual Darwin explora as origens biológicas do senso moral: The social animals which stand at the bottom of the scale are guided almost exclusively, and those which stand higher in the scale are largely guided, by special instincts in the aid which they give to the members of the same community; but they are likewise in part impelled by mutual love and sympathy, assisted apparently by some amount of reason. (DARWIN, 1998a [1871], p. 112; itálicos meus) Observe-se que já nesse pequeno trecho os instintos sociais dos animais “que situam-se na base da escala” interagem com a razão e as emoções do “amor mútuo e simpatia” na edificação de um substrato filogenético para o senso moral humano. Vejamos a seqüência: Although man, as just remarked, has no special instincts to tell him how to aid his fellow-men, he still has the impulse, and with his improved intellectual faculties would naturally be much guided in this respect by reason and experience. Instinctive sympathy would also cause him to value highly the approbation of his fellows; for, as Mr. [Alexander] Bain has clearly shewn, the love of praise and the strong feeling of glory, and the still stronger horror of scorn and infamy, "are due to the workings of sympathy." Consequently man would be influenced in the highest degree by the wishes, approbation, and blame of his fellow-men, as expressed by their gestures and language. (ibid.; itálicos meus) Aqui já se trata da interação de instintos, razão e - novamente - emoções (amor pelo elogio, horror e simpatia) na vida mental do próprio homem, construindo seu senso moral. Mas continuemos até o fim dessa passagem: Thus the social instincts, which must have been acquired by man in a very rude state, and probably even by his early ape- like progenitors, still give the impulse to some of his best 72 actions; but his actions are in a higher degree determined by the expressed wishes and judgment of his fellow-men, and unfortunately very often by his own strong selfish desires. But as love, sympathy and self-command become strengthened by habit, and as the power of reasoning becomes clearer, so that man can value justly the judgments of his fellows, he will feel himself impelled, apart from any transitory pleasure or pain, to certain lines of conduct. He might then declare- not that any barbarian or uncultivated man could thus think- I am the supreme judge of my own conduct, and in the words of Kant, I will not in my own person violate the dignity of humanity. (DARWIN, 1998a [1871], p. 113, itálicos meus) Aqui, mais uma vez, o amor e a simpatia persistem como importantes atributos participantes na mediação da complexa estrutura mental e moral humana. E, sempre numa perspectiva etnocêntrica, é o homem branco europeu que manifesta todas essas qualidades em seu grau máximo. Pela virtude do auto-controle, tão cultivada naqueles tempos (ALLEN, 1978), esse homem civilizado torna-se capitão de sua alma e senhor supremo da criação. E é a capacidade superior de simpatia desse gentil-homem britânico que o eleva acima dos demais seres, animais ou humanos, como se observa numa passagem mais adiante, na qual Darwin expõe o que poderíamos chamar de sua filosofia ética: As man advances in civilisation, and small tribes are united into larger communities, the simplest reason would tell each individual that he ought to extend his social instincts and sympathies to all the members of the same nation, though personally unknown to him. This point being once reached, there is only an artificial barrier to prevent his sympathies extending to the men of all nations and races. (DARWIN, 1998a [1871], p. 126; itálicos meus) Note-se, aqui, a progressiva expansão das fronteiras de consideração moral humanas como uma conseqüência da evolução do animal humano, da qual faz parte o processo civilizatório, a cargo do homem branco europeu. Mas essa ampliação de nossas fronteiras morais não se detém na nossa espécie, como se percebe na seqüência: 73 If, indeed, such men are separated from him by great differences in appearance or habits, experience unfortunately shews us how long it is, before we look at them as our fellow- creatures. Sympathy beyond the confines of man, that is, humanity to the lower animals, seems to be one of the latest moral acquisitions. It is apparently unfelt by savages, except towards their pets. How little the old Romans knew of it is shewn by their abhorrent gladiatorial exhibitions. The very idea of humanity, as far as I could observe, was new to most of the Gauchos of the Pampas. This virtue, one of the noblest with which man is endowed, seems to arise incidentally from our sympathies becoming more tender and more widely diffused, until they are extended to all sentient beings. (DARWIN, 1998a [1871], p. 126; itálicos meus) Nesse discurso em defesa de uma “simpatia para além dos confins do homem”, a despeito do etnocentrismo presente, Darwin antecipa em mais de um século duas tendências atuais nas discussões nos campos da filosofia moral e da bioética. Em primeiro lugar, o foco das pesquisas sobre a moral vem sendo deslocado do papel da racionalidade moral para o das “emoções morais” no estabelecimento dos valores normativos das diferentes culturas (HAIDT, 2003). Além disso, a concepção da emocionalidade animal é tema altamente relevante numa discussão que vem ganhando corpo em todo o mundo ocidental, tanto no nível da sociedade civil quanto da comunidade acadêmica. Essa discussão diz respeito aos critérios determinantes das normas e fronteiras éticas de conduta do homem em relação aos animais (BLUM, 1994; DENNET, 1997; SINGER, 2002 e 2004). E, conforme espero já ter deixado claro nessa altura, na visão de Darwin a simpatia era sem dúvida uma emoção, e figurava entre as inúmeras emoções que o homem compartilhava com os demais animais. Poderíamos dizer, assim, que dentro da teoria da mente em Darwin a simpatia constituía uma importante emoção moral. A leitura e análise das passagens acima demonstra, portanto, que o atributo mental da simpatia, que Darwin considera uma emoção, constituiu um 74 ponto de convergência entre todos os aspectos que compõem a teoria darwiniana da mente. Na complexidade e abrangência semântica desse termo se reunem e interagem os instintos (sociais), guiados pela razão e por essa emoção abrangente e sofisticada, além daquela do amor mútuo entre os membros de um mesmo grupo social - animal ou humano - para possibilitar a edificação da ética evolucionista de Darwin. Diante de todas as considerações acima apresentadas, defendo que na construção da teoria da mente em Darwin as emoções são elementos de importância tão acentuada quanto os instintos, a razão e a moral. Pois se desejamos obter uma compreensão abrangente e fidedigna da teoria da mente em Darwin, não é possível excluir qualquer desses componentes sem comprometer o conjunto. O mesmo vale para o que poderíamos chamar de teoria social darwiniana37, Em Darwin todos os grupos humanos - da tribo do ‘mais primitivo selvagem’ à mais avançada civilização européia - se constituem, em diferentes graus de sofisticação, a partir da complexa interação entre instintos sociais, leis morais, discernimento racional e emoções simpáticas. EMOÇÕES ANIMAIS E CONTINUIDADE MENTAL Pretendo agora contestar a principal alegação de Richards (1989), já citada anteriormente na Introdução, na qual justifica sua opção por deixar de lado as emoções em sua análise da teoria darwiniana da mente. Comparando a teoria das expressões emocionais defendida por Darwin com aquela fornecida pelos estudiosos modernos do comportamento animal, Richards parece enfatizar o equívoco de Darwin ao não apostar na seleção natural como 37 O que estou chamando de “teoria social darwiniana” não deve ser confundido com o ‘darwinismo social’. Esta entidade histórica não tem como ideólogo ou mesmo apoiador Charles Darwin; antes, está muito mais proximamente relacionada a Herbert Spencer. 75 mecanismo explicativo da evolução dessas expressões. Em vez da seleção natural, Darwin optara pela explicação da origem das expressões emocionais inatas a partir da herança de hábitos adquiridos. Como se isso não bastasse, e mais uma vez em acentuada discrepância com os etologistas de hoje, Richards acrescenta, Darwin negava que as respostas emocionais cumprissem quaisquer funções comunicativas vitais (RICHARDS, 1989, p. 230). Dito isso, Richards segue em frente com sua análise do instinto, da razão e da moral como os componentes realmente significativos das teorias da mente e comportamento por Charles Darwin e vários de seus contemporâneos. Entretanto, vale a pena relembrarmos aqui o desmembramento que Mayr (1998) propõe da teoria da evolução de Darwin em cinco teorias independentes: origem comum, gradualismo, especiação populacional e seleção natural. Dentre esses cinco componentes da teoria darwiniana propostos por Mayr (1998) citados, sustento que aquele que guarda relação mais direta com o tema da visão darwiniana das emoções não é a teoria da seleção natural, mas sim a teoria da origem comum (complementada pela teoria gradualista). Nas duas obras de referência dessa dissertação Darwin afirma sua intenção de demonstrar uma relação de continuidade mental - e, portanto, de origem ancestral comum - entre homens e animais. No início do capítulo III do Descent a questão é problematizada: We have seen in the last two chapters that man bears in his bodily structure clear traces of his descent from some lower form; but it may be urged that, as man differs so greatly in his mental power from all other animals, there must be some error in this conclusion. (DARWIN, 1998a [1871], p. 66) E no fim do capítulo IV, após ter apresentado inúmeras evidências e argumentos em prol da tese da continuidade mental entre animais e homem, Darwin faz um breve resumo conclusivo desse capítulo e do anterior, onde 76 reafirma a noção de que a diferença mental entre homens e animais - apesar de imensa - é de grau, e não de tipo. Observe-se aqui a presença das emoções no corpo argumentativo: There can be no doubt that the difference between the mind of the lowest man and that of the highest animal is immense. (…) Nevertheless the difference in mind between man and the higher animals, great as it is, certainly is one of degree and not of kind. We have seen that the senses and intuitions, the various emotions and faculties, such as love, memory, attention, curiosity, imitation, reason, &c., of which man boasts, may be found in an incipient, or even sometimes in a well- developed condition, in the lower animals. (DARWIN, 1998a [1871], p. 130; itálicos meus) Também no Expression a tese da ancestralidade comum é evocada logo no capítulo introdutório, para a explicação da evolução das expressões emocionais: No doubt as long as man and all other animals are viewed as independent creations, an effectual stop is put to our natural desire to investigate as far as possible the causes of expression. By this doctrine, anything and everything can be equally well explained; and it has proved as pernicious with respect to expression, as to every branch of natural history. With mankind some expressions, such as bristling of the hair under the influence of extreme terror, or the uncovering of the teeth under that of furious rage, can hardly be understood, except on the belief that man once existed in a much lower and animal-like condition. (…) He who admits on general grounds that the structure and habits of all animals have been gradually evolved, will look at the whole subject of expression in a new and interesting light. (DARWIN, 1998b [1872], p. 19) Nesse trecho acima, após uma crítica ao imobilismo intelectual que caracteriza a doutrina criacionista, Darwin sublinha o valor heurístico do conceito de origem comum para compreensão das expressões emocionais EMOÇÕES: SELEÇÃO NATURAL, COMUNICAÇÃO E FUNÇÃO BIOLÓGICA Além dos argumentos que aqui apresento em favor da importância da origem comum na visão darwiniana do papel das emoções na vida mental 77 animal e humana, devo insistir que, a despeito da crucial importância da teoria da seleção natural no pensamento darwiniano, a adesão a essa teoria nunca foi um pré-requisito para que um autor do século XIX fosse considerado um darwinista e aceito nesse grupo social. Ao contrário, como penso já ter demonstrado no capítulo anterior, a seleção natural sempre foi ponto de discórdia e dissenso, inclusive entre darwinistas (BOWLER, 1989; ELLEGARD, 1990; HULL, 1985; MAYR, 1998; RICHARDS, 1989). Diante disso, podemos afirmar que o fato de o mecanismo evolutivo evocado por Darwin para a origem das expressões emocionais não ser a seleção natural não exclui a importância das emoções enquanto componentes mentais relevantes na teoria darwiniana. Feita essa ressalva, podemos ainda discutir a tese de Richards de que Darwin não explicava a evolução das emoções recorrendo ao mecanismo da seleção natural, mas apenas à herança de hábitos adquiridos (RICHARDS, 1989, p. 230). Analisemos essa passagem do Descent: Species which are not social, such as lions and tigers, no doubt feel sympathy for the suffering of their own young, but not for that of any other animal. With mankind, selfishness, experience, and imitation, probably add, as Mr. Bain has shown, to the power of sympathy; for we are led by the hope of receiving good in return to perform acts of sympathetic kindness to others; and sympathy is much strengthened by habit. (DARWIN, 1998a [1871], p. 107) Até aqui o discurso de Darwin sobre a simpatia é pertinente com a análise feita por Richards, e com sua tese de que em Darwin as origens das emoções são explicadas sempre pelo mecanismo de herança de hábitos adquiridos. O problema é que Darwin não pára aqui. Ele prossegue: In however complex a manner this feeling [sympathy] may have originated, as it is one of high importance to all those animals which aid and defend one another, it will have been increased through natural selection; for those communities, which included the greatest number of the most sympathetic members, would flourish best, and rear the 78 greatest number of offspring. (DARWIN, 1998a [1871], p. 110; itálicos meus) Nessa passagem, Darwin admite explicitamente a possibilidade de que a emoção da simpatia seja “fortalecida pela seleção natural”. E mais adiante vemos Darwin explicar a origem da coragem pela seleção natural: It is, however, impossible to decide in many cases whether certain social instincts have been acquired through natural selection, or are the indirect result of other instincts and faculties (…) but courage, and in most cases strength, must have been previously acquired, probably through natural selection. (ibid; itálicos meus) Temos aqui, então, duas faculdades mentais que Darwin classifica como emoções: simpatia e coragem38. Em ambos os casos, ele invoca a seleção natural para explicar a fixação dessas atitudes nas populações animais e humanas. Dessa forma, devemos receber com reservas a afirmação feita por Richards e acima citada (e que tem se tornado lugar comum entre historiadores do darwinismo) segundo a qual Darwin não recorria à noção de seleção natural como mecanismo explicativo da origem das emoções. Grosso modo essa afirmação é pertinente, mas, como acabamos de ver, não deve ser entendida de forma rígida e conclusiva. A segunda tese de Richards que quero discutir é a de que as emoções, em Darwin, não desempenhavam papéis biológicos relevantes ou funções comunicativas vitais. Após suas afirmações sobre a ausência de importância da seleção natural na explicação darwiniana das emoções, Richards faz uma breve análise dos motivos pelos quais Darwin teria subestimado a importância biológica das expressões emocionais. Richards esclarece que, ao escrever o Expression, Darwin tinha como maior preocupação a de refutar a tese de 38 Na página 70 do Descent Darwin inclui a coragem entre as emoções que enumera ao defender sua tese de que “os animais inferiores são excitados pelas mesmas emoções que nós”. 79 Charles Bell, apresentada em sua obra Expression: Its Anatomy and Phylosophy. Nesse livro, Bell defendia que as expressões emocionais humanas haviam sido inscritas pelo Criador em nossas fisionomias como uma espécie de linguagem natural que permitia uma comunicação imediata de uma alma com outra. Imbuído do firme propósito de fortalecer sua defesa de uma origem comum entre homens e animais, em oposição à tese de Bell, de uma criação especial para o homem, na qual a função comunicativa das expressões emocionais entrava como evidência, Darwin teria carregado demais nas tintas39. Richards prossegue: Darwin, of course, refused to admit that instinctive expressions had such origin and transcendental use. But he went further. He denied to admit that they had any intrinsic use at all. When assessing the work of natural theologians, Darwin was always ready to acknowledege the functional, though not the theological, siginificance they assigned to animal traits. The famous anatomist and natural theologian Bell did not recognize any singularly biological function of the emotions, only their transcendental purpose. When Darwin rejected the latter, he had no better idea than Bell about the former. Neither Bell nor he [Darwin] could imagine any strictly biological use human emotions must have. Both men were simply unaware of the kind of important communicative functions the emotions serve in the animal and human economy. (RICHARDS, 1989, p. 231; itálicos meus). Tanto Richards (1989), quanto Burkhardt (1985) enfatizam que Darwin não atribuía às emoções ou às expressões emocionais uma maior importância biológica. Mas nenhum desses dois autores cita em que palavras de Darwin se apoiaram para sustentar essa afirmação. Suponho que trate-se do seguinte trecho, no capítulo conclusivo do Expression: The power of communication between the members of the same tribe by means of language has been of paramount importance in the development of man; and the force of language is much aided by the expressive movements of the face and body. (…) Nevertheless there are no grounds, as far as I can discover, for believing that any muscle has been developed or even modified exclusively for the sake of 39 Burkhardt (1985, p. 359) defende a mesma tese a esse respeito 80 expression. The vocal and other sound-producing organs, by which various expressive noises are produced, seem to form a partial exception; but I have elsewhere attempted to show that these organs were first developed for sexual purposes, in order that one sex might call or charm the other. Nor can I discover grounds for believing that any inherited movement, which now serves as a means of expression, was at first voluntarily and consciously performed for this special purpose - like some of the gestures and the finger-language used by the deaf and dumb. On the contrary, every true or inherited movement of expression seems to have had some natural and independent origin. (…) Even such words as that “certain movements serve as a means of expression” are apt to mislead, as they imply that this was their primary purpose or object. This, however, seems rarely or never have been the case; the movements having been at first either of some direct use, or the indirect effect of the excited state of the sensorium. (DARWIN, 1998b [1872], 351-352; itálicos meus) Temos aqui as palavras do próprio Darwin, praticamente descartando a existência de uma função primária de comunicação para as expressões emocionais, as quais aparentemente atribuía como única origem possível a herança de hábitos adquiridos. Mas será que essa afirmação de fato anula de todo a importância biológica da posse de um aparato físico capaz de comunicar emoções? Vejamos mais algumas passagens do Descent onde Darwin discute a evolução da linguagem. Inicialmente, ele contesta a tese de que o homem é o único animal capaz de fazer uso da linguagem: Language - This faculty has justly been considered as one of the chief distinctions between man and the lower animals. But man, as a highly competent judge, Archbishop Whately remarks, "is not the only animal that can make use of language to express what is passing in his mind, and can understand, more or less, what is so expressed by another." (DARWIN, 1998a [1871] p. 87) Em seguida, Darwin dá exemplos de outros animais capazes de comunicar emoções diversas por meio de sons diferenciados: In Paraguay the Cebus azarae when excited utters at least six distinct sounds, which excite in other monkeys similar emotions. The movements of the features and gestures of monkeys are understood by us, and they partly understand ours, as Rengger and others declare. It is a more remarkable fact that the dog, since being domesticated, has learnt to bark in at least four or 81 five distinct tones. Although barking is a new art, no doubt the wild parent-species of the dog expressed their feelings by cries of various kinds. With the domesticated dog we have the bark of eagerness, as in the chase; that of anger, as well as growling; the yelp or howl of despair, as when shut up; the baying at night; the bark of joy, as when starting on a walk with his master; and the very distinct one of demand or supplication, as when wishing for a door or window to be opened. According to Houzeau, who paid particular attention to the subject, the domestic fowl utters at least a dozen significant sounds. (DARWIN, 1998a [1871], p. 87) È importante atentar especialmente a esse trecho: The habitual use of articulate language is, however, peculiar to man; but he uses, in common with the lower animals, inarticulate cries to express his meaning, aided by gestures and the movements of the muscles of the face.* This especially holds good with the more simple and vivid feelings, which are but little connected with our higher intelligence. Our cries of pain, fear, surprise, anger, together with their appropriate actions, and the murmur of a mother to her beloved child are more expressive than any words. (DARWIN, 1998a [1871], p. 88; itálicos meus) Finalmente, Darwin conclui reafirmando a diferença de grau, e não de tipo, entre animais e humanos quanto ao atributo da linguagem. That which distinguishes man from the lower animals is not the understanding of articulate sounds, for, as every one knows, dogs understand many words and sentences. (…)The lower animals differ from man solely in his almost infinitely larger power of associating together the most diversified sounds and ideas; and this obviously depends on the high development of his mental powers. (DARWIN, 1998a [1871], p. 88) Comparemos, agora, a frase de Darwin por mim destacada em itálicos na passagem anterior [Our cries (...) than any words] com algumas palavras de Richards citadas acima. Richards afirma que “nem Bell nem ele [Darwin] foi capaz de imaginar qualquer uso estritamente biológico que as emoções humanas pudessem ter”. E conclui que ambos simplesmente não tinham consciência do tipo de importantes funções comunicativas que as emoções cumprem na economia animal e humana”. (RICHARDS, 1989, p. 231). Será que essa tese de Richards procede? Seria ela compatível com a afirmação 82 feita por Darwin, de que “nossos gritos de dor, medo, surpresa, raiva, junto a suas ações apropriadas, e o murmurar de uma mãe para seu filho amado são mais expressivos que quaisquer palavras”? (DARWIN, 1998a [1871] , p. 88). Penso que não. E acredito que o motivo dos equívocos cometidos por Richards ao analisar a importância das emoções na teoria da mente em Darwin decorre de um erro conceitual: o de confundir “expressões emocionais” com “emoções”. É ao esclarecimento dessa diferença conceitual que quero dedicar a última seção do presente capítulo. EXPRESSÕES EMOCIONAIS E EMOÇÕES COMO CONTEÚDOS MENTAIS Uma das manifestações do equívoco no qual Richards incorre é a tendência da literatura sobre teorias das emoções apontar o Expression como obra de referência do discurso darwiniano sobre o tema (CORNELIUS, 2000; GHISELIN, 1984; GREGORY,1987; RICHARDS, 1989). Essa atitude é em grande parte justificada, uma vez que a abordagem teórica e metodológica que Darwin adotou no Expression de fato inaugurou um vigoroso programa de pesquisa sobre as emoções que persiste até os dias de hoje (CORNELIUS, 2000; GREGORY, 1987). Entretanto, conforme já foi dito na Introdução, analisar o papel das emoções na teoria darwiniana com base unicamente no Expression implica um engano, que pode ser cometido até mesmo por renomados estudiosos do darwinismo. A essa atitude equivocada aderiu, por exemplo, Michael Ghiselin, que em 1969 publicou a primeira edição de The Triumph of The Darwinian Method, um trabalho clássico que em 1970 recebeu o Prêmio Pfizer da History of Science Society. No capítulo 8 desse livro, intitulado An Evolutionary 83 Psychology, Ghiselin (1984) defendia que as teses, posições e métodos de Darwin em sua abordagem do comportamento animal e humano vinham com freqüência sendo analisados de formas equivocadas. Ao debruçar-se especificamente sobre o tema das emoções na obra de Darwin, Ghiselin (1984, p. 204) afirma que “o papel da ‘emoção’ no sistema de Darwin tem sido muito mal compreendido”. Para sua análise das emoções na obra de Darwin, no entanto, Ghiselin baseia-se exclusivamente no Expression, e nem sequer menciona o Descent. Somente essa omissão pode tornar compreensível o grande equívoco no qual esse autor incorre em seguida, ao afirmar que “ele [Darwin] não tinha a intenção de defender que nossos sentimentos subjetivos, tais como aqueles que associamos à agressão, estão necessariamente presentes em outras espécies.” (GHISELIN, 1984, p. 204)” E o autor prossegue, defendendo de forma categórica que “as experiências subjetivas são totalmente irrelevantes para a teoria dele [Darwin], e podem ser tratadas como epifenômenos” (ibid.). Se autores como Richards (1989) e Ghiselin (1984) houvessem recorrido aos capítulos III e IV do Descent para analisar a abordagem e a importância das emoções em Darwin, talvez tivessem a oportunidade de reformular suas concepções. A historiadora Janet Browne teve esse discernimento, e observou, com muita propriedade, que “o objetivo do Expression era, no fim das contas, concentrar-se na evolução das expressões propriamente ditas, e não na psicologia de sua identificação; nos atributos físicos, e não na percepção mental ou convenções” (BROWNE,1985, p. 317). Em outras palavras, de fato não há no Expression uma preocupação com as emoções enquanto conteúdos mentais. Mas isso não significa que essa aproximação esteja ausente na obra 84 de Darwin. Pois é no Descent, e não no Expression, que encontramos especulações sobre a experiência mental das emoções. Para ilustrar minha tese, podemos comparar dois trechos nos quais Darwin analisa o comportamento afetivo de um cão direcionado ao seu dono. Comecemos pelo Expression: It is (...) not a little difficult to represent affection in a dog, whilst caressing his master and wagging his tail, as the essence of the expression lies in the continuous flexuous movements (DARWIN, 1998b [1872], p. 56) Vejamos agora um trecho do Descent, que também fala do afeto de um cão pelo dono: The love of a dog for his master is notorious; as an old writer quaintly says, "A dog is the only thing on this earth that luvs you more than he luvs himself." (DARWIN, 1998a [1871], p. 71) Esses trechos exemplificam bem o teor das abordagens diferenciais dessas duas obras de Darwin. Em ambos os livros Darwin assume o propósito de demonstrar a relação de continuidade evolutiva entre as características animais e as humanas. Mas enquanto no Expression a ênfase é claramente na origem evolutiva e descrição física ou fisiológica das expressões emocionais, no Descent a ênfase é nas emoções em si, como experiências mentais subjetivas, sujeitas ao mesmo processo evolutivo e pressões ambientais seletivas que as características físicas das espécies. RESUMINDO E CONCLUINDO Como se pôde perceber pela leitura desse capítulo, no século XIX as emoções estavam no ar e na pauta do dia. A sensibilidade emocional era um atributo caro ao gentil-homem vitoriano, em sua apreciação das artes, em suas teses políticas humanitárias, e mesmo em sua relação com os assim- 85 chamados animais inferiores. Em harmonia com essa ambiência intelectual e de valores, Charles Darwin atribuiu grande importância às emoções em sua teoria: como atributos que evidenciavam a continuidade evolutiva entre os animais e o homem, como ingredientes de sua teoria da moralidade e da sociabilidade humanas e como elemento indissociável dos demais componentes da mente, como a moral, o instinto e a razão. Penso haver apresentado ao longo desse capítulo evidências que apontam para a refutação de algumas teses freqüentes na literatura quando se discute o lugar das emoções no discurso de Darwin. As teses às quais me refiro são: 1) a idéia de que as emoções são um componente de menor importância na obra de Darwin; 2) a tese segundo a qual em Darwin as emoções não têm valor comunicativo; 3) a concepção de que no discurso darwiniano as emoções nunca teriam origem na seleção natural ou estariam sujeitas à ação deste princípio; 4) a idéia de que Darwin não dava importância às emoções enquanto estados subjetivos, mas apenas como mecanismos expressivos; e 5) a tendência, comum a muitos autores, a analisar a importância das emoções na teoria darwiniana com base unicamente no Expression, desprezando a grande relevância do Descent quanto ao tema. Meu propósito no próximo capítulo será o de aprofundar a análise do papel das emoções na teoria de Charles Darwin a partir de um estudo de caso. Prosseguirei investigando como as emoções se manifestam no animal darwiniano. Espero que ao fim desse capítulo o leitor esteja definitivamente convencido quanto à inadequação de teses de autores como Robert Richards (1989), que relega as emoções na obra de Darwin a um segundo plano, ou como Michael Ghiselin (1984), que afirma categoricamente que a experiência 86 emocional subjetiva não tinha qualquer importância na concepção de Darwin sobre as emoções. Para isso, faremos um estudo de caso, tomando como unidade de análise o que chamarei de “o cão de Darwin”. 87 CAPÍTULO 3: Animal darwiniano: o cão de Darwin APRESENTANDO O CÃO DE DARWIN É desnecessário falar sobre a importância cultural do cão na estruturação das mais diversas sociedades humanas ao redor do globo. Esse animal tem sua história evolutiva entrelaçada com a história humana já desde há muitos séculos (SERPELL, 2003), e desde o início dessa relação o cão figura em nossas narrativas históricas, ficcionais e até mesmo míticas. Nas narrativas darwinianas o cão também se destaca, em termos das inúmeras faculdades mentais a ele atribuídas. Algumas delas serão exploradas nesse capítulo, mas quero agora chamar especial atenção para uma passagem do Descent, por toda a simbologia que evoca: I had a dog who was savage and averse to all strangers, and I purposely tried his memory after an absence of five years and two days. I went near the stable where he lived, and shouted to him in my old manner; he shewed no joy, but instantly followed me out walking, and obeyed me, exactly as if I had parted with him only half an hour before. A train of old associations, dormant during five years, had thus been instantaneously awakened in his mind. (DARWIN, 1998a [1871], p. 76) Não há como não perceber a semelhança, aqui, entre o cão de Darwin e Argos, o velho cão de Ulisses. Única criatura a reconhecer o herói da Odisséia quando este retorna, maltrapilho, da longa jornada de sua vida, Argos morre agonizante aos pés de seu dono após abanar-lhe a cauda pela última vez. Se quisermos aprofundar a comparação entre o naturalista e o personagem mítico, é fácil deduzir que essa ausência prolongada à qual se refere Darwin corresponde certamente à sua expedição a bordo do Beagle, que durou cinco anos (BOWLER, 1989). Assim como em Ulisses, uma jornada de exploração do desconhecido pelos mares em busca de tesouros, conquistas, descobertas. Uma jornada da qual seu protagonista voltaria irreversivelmente transformado, calejado, amadurecido. Uma viagem que ficaria registrada na história e na 88 mitologia da ciência como feito heróico capaz de transformar o destino dos homens. Nos dois casos, o tema central é o amor devotado de um cão por seu dono, posto à prova pelo tempo, pela ausência, pela distância. Um tema de cunho emocional. No presente capítulo o cão será nosso guia para adentrarmos o universo das emoções animais descritas pela pena de Charles Darwin. Inicialmente examinarei de forma breve as características e valores atribuídos a esse animal na sociedade vitoriana, e em seguida passarei do cão vitoriano para o que chamarei de cão de Darwin. Com esse termo quero me referir especificamente ao cão que se revela aos olhos do leitor a partir do olhar e das palavras de Charles Darwin nos textos do Descent e do Expression. Considerarei esse cão de Darwin como uma unidade de análise, de acordo com o método espécime- tipo, descrito por David Hull (1985). Minha intenção e meu propósito são o de chamar o cão de Darwin em meu auxílio no intuito de consolidar a refutação de duas teses. A primeira dessas teses é aquela, implícita em Richards (1989), de que as emoções ocupariam espaço secundário na teoria da mente em Darwin. A segunda tese à qual me refiro é aquela explicitada em Ghiselin (1984), segundo a qual não havia na obra de Darwin uma real preocupação com as emoções enquanto estados mentais subjetivos. Ao fim dessa argumentação, espero ter convencido o leitor da grande importância das emoções enquanto atributos mentais no discurso darwiniano. 89 O MÉTODO ESPÉCIME-TIPO Em um artigo intitulado Darwinism as a Historical Entity: a Historiographical Proposal, David Hull (1985) defende e discute a interpretação do darwinismo como uma entidade histórica. Esse autor propõe, para análise dessa entidade, a adoção de um método emprestado da ciência taxonômica: o método espécime-tipo. O termo ‘espécime-tipo’ foi tomado emprestado por Hull (op. cit.) da ciência da taxonomia, que em sua fase pré-darwiniana tinha uma orientação essencialista. Dentro dessa concepção, em qualquer dada espécie de ser vivo o esperado era que todos os indivíduos fossem praticamente idênticos morfologicamente, e as variações eram consideradas acidentais e eventuais. De acordo com essa lógica, sempre que uma nova espécie descoberta era descrita pelos naturalistas, escolhia-se como modelo daquela espécie para futuras comparações e classificações algum exemplar que fosse julgado apropriado como representante típico da espécie em questão. Esse exemplar típico recebia o nome de “espécime-tipo”, por entenderem os cientistas que aquele exemplar reunia o maior número possível das características mais comuns aos indivíduos daquela espécie. Armazenado em algum museu de história natural, aquele espécime quase platônico era tomado como modelo de comparação para classificações de novos exemplares. Com o advento da teoria evolucionista de Darwin, porém, a ciência taxonômica foi, aos poucos, sofrendo transformações significativas. Ao negar a visão essencialista e enfatizar a variabilidade intra-específica, o programa de pesquisa darwinista demonstrou que não existem realmente indivíduos ideais representativos de uma espécie. A variação passou a ser a regra, e não mais a 90 exceção. Em decorrência dessa nova concepção, na taxonomia moderna, de orientação não-essencialista, o primeiro exemplar encontrado de uma nova espécie, por mais aberrante que pareça em comparação com os tipos morfológicos mais comumente encontrados, pode ser usado como espécime- tipo, ou seja, como referência para descrição daquela espécie. Extrapolando essa lógica não-essencialista para a análise de entidades históricas, Hull (1985) defende que se desejamos estudar uma comunidade científica ou um sistema conceitual como entidade histórica, podemos eleger qualquer autor pertencente a essa comunidade ou qualquer conceito inerente ou dedutível desse sistema como um espécime-tipo. Em outras palavras, o pesquisador pode escolher qualquer membro de uma comunidade ou qualquer conceito dentro de um sistema e acompanhar seu comportamento na rede de relações que estabelece, sem precisar preocupar-se em escolher algum ‘representante típico’. A idéia subjacente é que não importa quão periférico aquele espécime-tipo possa parecer em relação à entidade histórica estudada, se sua teia de relações for bem explorada acabará revelando o perfil, a dinâmica, a variabilidade, a trajetória dessa entidade histórica. Para uma discussão da teoria darwiniana das emoções40, aqui entendida como entidade histórica, adotarei como espécime-tipo, ou seja, como unidade de análise, o cão de Darwin, i.e., o cão conforme visto por esse autor. Esse cão será analisado como portador de emoções para um estudo da importância das mesmas na obra de Darwin. Antes de prosseguirmos, porém, com uma descrição do espaço de destaque que o cão ocupou no imaginário da Inglaterra dos períodos moderno 40 Refiro-me aqui a uma teoria darwiniana das emoções como um subconjunto de um corpo teórico mais amplo ao qual já me referi antes como teoria da mente em Charles Darwin. 91 e vitoriano, faremos um recuo no tempo, para observar o nascimento dessa relação homem-cão. Esse recuo nos remeterá a tempos longínquos; na verdade, à pré-história humana. A RELAÇÃO ENTRE HOMENS E CÃES: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA A família dos canídeos conta com trinta e oito espécies catalogadas pelos taxonomistas. De todas essas espécies, apenas uma é considerada totalmente domesticada: o cão (Canis familiaris) (CLUTTON-BROCK, 2003). Hoje a maioria dos cientistas considera o cão um descendente direto do lobo (Canis lupus), e desde o período geológico do Pleistoceno Médio41 já existem registros arqueológicos de ossos de lobos em associação com os de humanos, o que sugere que alguns lobos domados teriam sido os precursores dessa relação já milenar entre cães e homens (Clutton-Brock, op. cit.). As evidências arqueológicas indicam que o cão foi a primeira espécie de animal a ser domesticada, o que deve ter ocorrido por volta do fim da última Era do Gelo - que se estendeu de cerca de 19 mil a 10 mil anos atrás, quando toda a subsistência humana dependia da caça e da coleta (CLUTTON-BROCK, 2003, p. 10). Até o momento presente, o mais antigo achado de um cão domesticado remonta a 14 mil anos atrás, em sítios que pertenceram ao período cultural Epipaleolítico. Esse período teve como uma de suas principais características uma dramática mudança na estratégia de caça usada pelo homem, graças ao advento das flechas com pontas de pedra. E acredita-se que a parceria com os cães na caça tenha se somado a essa inovação tecnológica, gerando um aumento significativo no êxito dos caçadores daquele período (CLUTTON-BROCK, 2003, p. 10). 41 Período geológico compreendido entre 700.000 e 120.000 anos atrás 92 Em um sítio israelense do mesmo período, no Vale do Jordão, um achado de 12 mil anos deixa claro o valor dos cães dentro daquela cultura de caçadores-coletores. Numa sepultura feita de pedras amontoadas, foram encontrados, junto a um esqueleto humano, os restos ósseos de um cãozinho. O esqueleto humano estava do lado direito, em posição flexionada, e tinha sua mão pousada sobre o tórax do filhote (CLUTTON-BROCK, 2003, p. 10). Essa disposição sugere, obviamente, o valor espiritual e afetivo que os cães já possuíam então em muitas culturas. Há dezenas de séculos esses animais acompanham o homem em sua diversificação cultural e sua evolução tecnológica. Desde tempos imemoriais elegemos e adotamos essa espécie como nossa companheira, e nossas atitudes para com os cães alteraram os rumos da própria evolução desses animais. Por meio da seleção artificial, conduzida pelas mãos e pelos propósitos dos homens, os cães diversificaram-se nas mais variadas raças, de portes, comportamentos, aptidões e tendências as mais diversas. Hoje os cães servem aos homens não mais apenas como colaboradores de caçadas. São também guardiões de propriedades, pastores de rebanhos, animais de tração, rastreadores de drogas e de fugitivos, e em grande número cumprem o papel de cães de companhia, companheiros no conforto do lar, entre tantas outras funções desempenhadas de acordo com as características genéticas herdadas e o treinamento recebido (SERPELL, 2003) Provável companheiro nosso de caça desde a Era do Gelo, esse parceiro ancestral vem, portanto, seguindo conosco há milênios. Juntos, homens e cães já rastreavam, perseguiam, acuavam e abatiam presas de outras eras. Dividiam o calor de seus corpos e os despojos de suas caçadas. 93 Desde os tempos em que seus ancestrais sentavam-se lado a lado aos pés das fogueiras primevas, homens e cães compartilham uma longa história e uma duradoura relação de parceria. Um animal que acompanha os passos do homem há tantas eras certamente terá ocupado diferentes lugares no imaginário popular em diferentes períodos e culturas. Mesmo hoje as opiniões das pessoas sobre o cão doméstico variam muito dentro de uma mesma cultura. Podem ir de um extremo a outro, da aversão e rejeição mais radicais a um amor ingênuo e antropomorfizante (SERPELL, 2003). E no período moderno uma das diversas características crescentemente atribuídas a esse animal, assim como a muitos outros, era a da individualidade mental. EMOÇÕES E O “EU” ANIMAL Já no período moderno, segundo Keith Thomas (2001), se observava uma ênfase na sensibilidade como valor cultural, e essa tendência não se restringia aos homens ou às relações humanas. Ao contrário, o cultivo de bons e nobres sentimentos se espraiava nas relações entre homens e animais. Refletia-se, no campo da ética, em questionamentos contra a crueldade com os animais. Aqui importavam não apenas os sentimentos que um homem deveria ser capaz de nutrir para com os animais, mas também a inteligência, a sensibilidade, as experiências emocionais das quais os próprios animais eram considerados capazes. Ou, nas palavras do Lorde Monboddo, o fato de os animais serem aptos a sentir os “prazeres da mente”, tais como a solidariedade de grupo e a afeição pela prole ( THOMAS, 2001, p. 215). 94 Até mesmo uma capacidade moral parecia ser atribuída a pelo menos alguns animais domésticos por boa parte da população. Treinavam-se cães e cavalos mediante um complexo sistema de recompensas e punições, processo este que visava a fazer desenvolver-se um ‘caráter’ individual. Nas palavras do terceiro conde de Shaftesburry, “suas afeições e paixões, seus apetites e antipatias” eram “observados tão adequadamente como os da espécie humana, sob a mais estrita disciplina da educação”42. Eram justamente essas diferenças individuais de temperamento e caráter entre os animais que os faziam moralmente responsáveis por seus atos. Essa individualidade animal era refletida, por exemplo, no hábito - até hoje presente - de dar aos animais domésticos nomes individuais. (THOMAS, 2001, p. 121). Afirmava-se, assim, no período moderno, um “eu” animal, uma atenção às idiossincrasias e a uma espécie de subjetividade de cada animal como indivíduo único. INDIVIDUALIDADE E VARIABILIDADE MENTAL NO ANIMAL DARWINIANO Essa atenção ao eu, que já começara a despontar no período moderno, ganharia nova força e novas tintas com a já mencionada preocupação obsessiva com a introspecção que, segundo Peter Gay (1999), caracterizava a sociedade burguesa vitoriana. O século XIX foi um período de intensa afirmação do “eu”, da valorização do indivíduo como centro da experiência, tendência que conheceria seu apogeu um pouco mais tarde, com o nascimento da psicanálise de Sigmund Freud (GAY, 1999). Esse olhar individualizante permeia e fundamenta toda a obra de Charles Darwin. Afinal, um dos aspectos que caracterizam a teoria 42 citado em Thomas, 2001, p. 116 95 evolucionista de Darwin é o chamado “pensamento de população”, em oposição à concepção essencialista da origem e diversidade das espécies animais e vegetais (MAYR, 1998). Na formulação de seu pensamento populacional, Darwin dava ênfase à variação individual, pois era justamente a existência dessa variabilidade intra-específica que permitia a ação da seleção natural, favorecendo o êxito competitivo e a vantagem reprodutiva dos indivíduos melhor adaptados às condições ambientais num dado momento histórico (BOWLER, 1989 ; DARWIN, 2002 [1859]; ELLEGARD, 1990; MAYR, 1998). Essa variabilidade das características individuais não estava restrita aos aspectos físicos; estendia-se também aos traços mentais. No Descent Darwin aponta como uma das tantas evidências da continuidade mental entre animais e homens o fato de que, assim como acontecia com os homens, também entre os animais havia diferenças individuais bem acentuadas em habilidades mentais: The variability of the faculties in the individuals of the same species is an important point for us, and some few illustrations will here be given. But it would be superfluous to enter into many details on this head, for I have found on frequent enquiry, that it is the unanimous opinion of all those who have long attended to animals of many kinds, including birds, that the individuals differ greatly in every mental characteristic. (Darwin, 1998a [1871], p. 67; itálicos meus) E aos poucos vai ganhando corpo ao longo das linhas do Descent esse animal darwiniano. Um animal que, como já vimos no capítulo anterior, goza de uma vida mental rica. Um animal dotado de instintos, racionalidade e mesmo de instintos sociais precursores da moral humana. Um animal que experimenta 96 emoções e que goza de peculiaridades mentais e comportamentais que lhe conferem individualidade. ANIMAIS PRIVILEGIADOS Muitos dos traços desse animal darwiniano já despontavam, como vimos, no período moderno, nas emergentes concepções da sociedade inglesa sobre a vida interior dos animais. E a respeito da publicação do Descent por Darwin, já em 1871, Thomas (2001, p. 169) comenta que “não é demasiado ver [no Descent] (...) a influência de uma longa tradição de histórias de classe média sobre a sagacidade e o caráter animais”. Thomas chama, porém, atenção para o fato de que essa mentalidade e atitude de maior sensibilidade na lida com os animais não se espalhava de forma homogênea. Afirma que por trás da evidente distinção de classes havia uma fronteira muito nítida entre as sensibilidades. A delicadeza com os animais era um luxo que nem todos tinham condições de praticar. A maioria dos trabalhadores “continuava a considerar os animais de uma perspectiva funcional, em que não entrava sentimento” (THOMAS, 2001, p. 223). Tampouco dentro das classes médias todos os tipos de animais eram igualitariamente considerados dignos de um tratamento benevolente. Thomas enumera algumas “espécies privilegiadas”, como o cavalo, o falcão, o gato, o cão. Basicamente, animais domesticados, principalmente os de estimação, que eram distinguidos dos demais animais por três traços particulares: não eram usados como alimento; tinham permissão para entrar nas casas; recebiam nomes individuais. Além disso, com freqüência esses mascotes eram melhor alimentados que os empregados. Muitos eram enfeitados com anéis, fitas, 97 plumas e sinos. Tão valorizados eram esses animais privilegiados, que vieram até mesmo a tornar-se presença constante nos retratos de família em grupo, e os membros da aristocracia manifestavam um desejo crescente de se fazer cercar de pinturas individuais de seus cães, pássaros e cavalos favoritos. (ibid., p. 141). Com a morte de seus animais de estimação, os pesarosos proprietários podiam sofrer profundo abalo, e não eram poucos os que marcavam tais acontecimentos com epitáfios e elegias. E se o dono os precedia na sepultura esses animais podiam comparecer ao funeral e por vezes chegavam a receber um legado para sua manutenção. Thomas não deixa dúvidas, no entanto, a respeito de qual, dentre esses animais privilegiados, era o grande predileto: “O cão era o preferido de todos os animais. Havia cães por toda a parte na Inglaterra do início dos tempos modernos.” (THOMAS, op. cit., p. 122). O CÃO NO IMAGINÁRIO INGLÊS: DO PERÍODO MODERNO À ERA VITORIANA Segundo Thomas (2001, p. 130), a Inglaterra de séculos anteriores testemunhou uma verdadeira obsessão pelos cães, e os alicerces dessa obsessão foram lançados no princípio dos tempos modernos. Assim, no século XVIII o cão já era geralmente conhecido como o mais inteligente de todos os quadrúpedes conhecidos, e louvado como o mais fidedigno e a companhia mais humilde do homem. Thomas afirma, ainda, que houve também uma tendência acentuada a encarar o cão como símbolo nacional. A aristocracia tinha especial predileção por esse animal, daí o provérbio: “não pode ser fidalgo quem não ama um cão” (ibid., p. 124). Apesar disso, continua o autor, 98 “a publicação de obras sentimentais sobre os cães só começou no século XIX”, período de ascensão das exposições caninas, fundação do Kennel Club e “a redação de inumeráveis poemas sobre cães com olhos humanos” (ibid., p. 130) Não parece ter sido pequena a influência dessa mentalidade sobre Charles Darwin. No Expression são abundantes as referências ao cão, e há várias pranchas com gravuras de cães em diferentes posturas para ilustrar os ‘princípios gerais de expressão’ por ele concebidos. Também no Descent Darwin faz inúmeras alusões ao cão, como exemplo da posse, pelos animais, das mais diversas faculdades mentais, muitas das quais se encaixam no rol das emocionais: os cãezinhos que brincam são exemplos de felicidade; certos cães são bem-humorados, enquanto outros são o oposto; ao defender seu dono do ataque de terceiros, um cão demonstra simpatia e fidelidade. O ciúme que um cão sente de seu dono é evidência da necessidade que muitos animais sentem de amar e ser amados. Um cão que carrega a cesta para seu dono sente orgulho, e gosta de ser aprovado ou elogiado. DARWIN E SEUS CÃES Sabe-se que Charles Darwin apreciava a companhia de cães. Na biografia que escreveu sobre esse naturalista, Janet Browne (2003, p. 407) comenta que uma visita à estufa para uma conversa com os jardineiros, seguida de uma passeio a esmo pelas cercanias “com um cão em seus calcanhares” constituíam uma parte essencial de sua rotina diária. Dois cães se destacaram na trajetória pessoal de Charles Darwin: Bob e Polly (BROWNE, 2003, p. 361). Polly era uma terrier que pertencia a sua filha Henrietta e, nas palavras de Browne, “tão devotada a Darwin quanto este era 99 devotado a ela” (ibid., p. 349) Na verdade, após o casamento de Henrietta, Polly permaneceu em Downhouse, a propriedade rural onde viviam os Darwin, e “adotou Darwin completamente” (ibid., p. 361) A pequena terrier aparece no Expression como exemplo de expressões de comportamento inteligente e de atenção. Acompanhava seu dono e a família a toda parte, e deitava-se em um tapete aos pés do sofá onde ele repousava (ibid., p. 401). Era ela o cão que dormia num cesto próximo à lareira de seu escritório, enquanto Darwin escrevia seus textos destinados a atravessar os séculos (ibid., p. 361). Bob, o cão dos estábulos, também figurava nos escritos de Darwin. O naturalista tomou-o como exemplo, no Expression, para explicar o seu “princípio da antítese”, segundo o qual uma determinada expressão emocional era explicada como oposta, em manifestação física e significado comunicado, a alguma outra expressão que lhe teria servido de modelo evolutivo (BROWNE, 2003, p. 361). Era também a Bob que Darwin referia-se, no Expression, ao descrever a “cara de estufa” adotada por um de seus cães, numa expressão de desespero absoluto ao dar-se conta que seu dono saíra de casa meramente para uma visita à estufa, e não para uma longa caminhada em sua companhia pelos arredores (ibid.) Vivendo à sombra do eminente cientista, acompanhando-o por todo lugar e proporcionado material para suas observações, Bob e Polly - e provavelmente também outros cães - certamente inspiraram Darwin em boa parte de suas formulações sobre o comportamento e os atributos da mente animal, aqui incluídas as emoções. Sua dedicação ao dono, seus folguedos, suas expressões de raiva, medo, alegria e dor decerto forneceram muito da 100 substância com a qual seria construído, preenchido e corporificado o espécime- tipo do cão de Darwin . O CÃO DE DARWIN COMO EXEMPLAR DA INTELIGÊNCIA SUPERIOR CIVILIZADA Antes de entrarmos na análise das faculdades emocionais das quais o cão de Darwin seria portador, quero apontar uma relação entre os binômios selvagem versus civilizado e suas implicações no que tange às diferenças de capacidade mental, na percepção de Charles Darwin. Ao longo de todos os capítulos do Descent o discurso de Darwin sobre a evolução da mente está em visível sintonia com a perspectiva eurocêntrica característica da Inglaterra do século XIX. De acordo com essa visão, haveria uma gradação quanto à capacidade mental das diversas raças humanas. Nessa verdadeira escala evolutiva, os seres humanos pertencentes a culturas de caçadoras-coletores são considerados biologicamente mais primitivos e, portanto, moral e mentalmente inferiores. Inúmeras são as passagens nas quais essa crença é explicitada. Uma vez que a análise dessa concepção não está no cerne do problema que ora estou estudando, destacarei aqui apenas um trecho ilustrativo: The chief causes of the low morality of savages, as judged by our standard, are, firstly, the confinement of sympathy to the same tribe. Secondly, powers of reasoning insufficient to recognise the bearing of many virtues, especially of the self- regarding virtues, on the general welfare of the tribe. Savages, for instance, fail to trace the multiplied evils consequent on a want of temperance, chastity, &c. And, thirdly, weak power of self-command; for this power has not been strengthened through long-continued, perhaps inherited, habit, instruction and religion. (DARWIN, 1998a [1871], p. 123; itálicos meus) Analisando a moralidade “inferior” dos ditos “selvagens”, Darwin afirma também a inferioridade destes no uso da razão e no poder de auto-controle. 101 Noutra passagem Darwin compara a mente do cão com a de seus parentes selvagens. O trecho que segue faz parte da contra-argumentação apresentada por Darwin em oposição à declaração feita pelo Arcebispo Summer, segundo a qual somente o homem seria capaz de auto-aprimoramento. Darwin responde com vários contra-exemplos, dentre os quais o que segue abaixo: Our domestic dogs are descended from wolves and jackals, and though they may not have gained in cunning, and may have lost in wariness and suspicion, yet they have progressed in certain moral qualities, such as in affection, trust-worthiness, temper, and probably in general intelligence (DARWIN,1998a [1871], p. 83) Aqui observa-se que o cão de Darwin, como animal domado pela cultura civilizatória, é objeto e agente de uma evolução mental em muito semelhante àquela que caracteriza o homem branco europeu. Assim como o gentil-homem britânico goza de uma inteligência superior à dos grandes antropóides e à dos selvagens primitivos, também o cão supera em capacidade mental o lobo e o chacal, seus parentes selvagens mais próximos. Assim como ocorre com seu dono, o cão de Darwin, seu fiel companheiro, honra seu posto de melhor amigo do homem. São ambos expressões, em escalas diferentes, da supremacia das raças nobres sobre as raças bárbaras, da inteligência civilizada sobre a inteligência primitiva e selvagem. Será esse cão de Darwin o animal que acompanharemos a partir de agora, analisando suas faculdades mentais em busca de uma melhor compreensão do status das emoções na mente do animal darwiniano. O CÃO DE DARWIN - ATRIBUTOS MENTAIS GERAIS: BREVE ANÁLISE Tomando o cão de Darwin como unidade, os apêndices anexos de 1 a 3 apresentam as passagens dos capítulos III e IV do Descent nas quais o cão figura como detentor de faculdades mentais diversas. Embora a abordagem 102 dessa dissertação seja qualitativa, penso que alguns cálculos percentuais simples podem ajudar a demonstrar a importância das emoções no corpo de evidências apresentadas por Darwin em favor da tese da continuidade mental animal-homem. Os apêndices 1 e 2 trazem um levantamento dos trechos do capítulo IV nos quais o cão é mencionado. Observe-se que no Apêndice 1 estão listados 23 atributos mentais, dos quais 17 (73,9 %) foram consideradas emoções de acordo com os critérios previamente estabelecidos43. No Apêndice 2 Darwin contesta aforismos então vigentes em defesa da singularidade mental humana. Os sete aforismos que foram listados são exclusivamente aqueles nos quais o cão se faz presente. Dos enunciados dos aforismos (afirmados por outros autores ou crenças ligadas ao senso comum no período) nenhum diz respeito diretamente a faculdades emocionais. No entanto, na contra-argumentação apresentada por Darwin, em três dos sete casos (logo, 42,8%) Darwin lança mão das emoções animais como evidências em favor de suas teses. O Apêndice 3, por sua vez, conta com 18 atributos mentais associados ao cão por Charles Darwin no capítulo IV do Descent. Desses 18 atributos, 13 (ou seja, 72,2%) foram considerados emoções. Não se fazem aqui necessários tratamentos estatísticos mais elaborados, pois as implicações para a nossa discussão são óbvias. Tomemos como parâmetros de classificação de atributos mentais as categorias eleitas por Richards (1989): instinto, razão e moral, e somemos a esses atributos as emoções. Dessas quatro categorias de atributos mentais, as emoções se destacam, figurando nos apêndices 1 e 3 na casa dos 70%, e no Apêndice 2 43 Ver página 67 103 aproximando-se dos 50% das faculdades mentais discutidas por Darwin como relacionadas ao cão. Convém lembrar que o cão faz aqui as vezes de espécime-tipo, o que significa que estou considerando que os dados aqui relacionados ao cão de Darwin são representativos do conjunto de argumentos e formulações de Darwin como um todo, no que diz respeito à importância das emoções animais em sua teoria da mente. EMOÇÃO, INDIVIDUALIDADE E SUBJETIVIDADE NO CÃO DE DARWIN Como já mencionei antes, Michael Ghiselin, renomado historiador do darwinismo, afirma que no discurso de Darwin as emoções são meros epifenômenos, não tendo qualquer importância como estados mentais subjetivos. O autor vai além, afirmando que Darwin não defendia que os estados mentais emocionais vivenciados pelo homem seriam compartilhados com outras espécies animais, e que se por vezes seu discurso sugeria essa atitude, tratava-se na verdade do uso de metáforas como recursos explicativos. (GHISELIN, 1984, p. 204) Tenho a intenção de dedicar essa seção à refutação dessa tese de Ghiselin, demonstrando como o cão de Darwin é usado para demonstrar a individualidade mental e a subjetividade emocional do animal darwiniano. Pretendo também mostrar que há uma semelhança real, e não meramente aparente, atribuída por Darwin entre os estados mentais experimentados pelos animais e aqueles vivenciados pelo homem. No capítulo III do Descent , após iniciar um parágrafo no qual tenta estabelecer a idéia de que “os animais inferiores são excitados pelas mesmas emoções que nós” (p. 70), logo adiante vemos esse trecho: Courage and timidity are extremely variable qualities in the individuals of the same species, as is plainly seen in our dogs. 104 Some dogs and horses are ill-tempered, and easily turn sulky; others are good-tempered; and these qualities are certainly inherited (DARWIN, 1998a [1871], p. 71) Nessa passagem Darwin aponta a existência de diferenças mentais individuais entre os cães, usando como exemplo a coragem, a timidez e as variações de humor - todas considerados emoções pelo autor. Examinemos agora dois trechos nos quais o cão de Darwin serve como exemplo da possibilidade de auto-consciência em um animal. Num deles o cão se mostra portador de qualidades precursoras de um comportamento moral: Besides love and sympathy, animals exhibit other qualities connected with the social instincts, which in us would be called moral; and I agree with Agassiz that dogs possess something very like a conscience (DARWIN, 1998a [1871], p. 106) No outro trecho, Darwin apela para a experiência subjetiva de vida de um velho cão. It may be freely admitted that no animal is self-conscious, if by this term it is implied, that he reflects on such points, as whence he comes or whither he will go, or what is life and death, and so forth. But how can we feel sure that an old dog with an excellent memory and some power of imagination, as shewn by his dreams, never reflects on his past pleasures or pains in the chase? And this would be a form of self- consciousness.(DARWIN, 1998a [1871], p. 86; itálicos meus) Lembrando que Darwin considera a dor uma emoção, observe-se no trecho acima a evocação de reflexões do cão “sobre seus prazeres e dores passados vividos nas caçadas”. Em seguida quero chamar a atenção para a passagem abaixo: That animals retain their mental individuality is unquestionable. When my voice awakened a train of old associations in the mind of the before-mentioned dog, he must have retained his mental individuality, although every atom of his brain had probably undergone change more than once during the interval of five years. (ibid., p. 87) 105 Aqui Darwin afirma com todas as letras a individualidade mental dos animais, exemplificados pelo cão. E a complexidade subjetiva desse animal darwiniano fica ainda mais visível diante da vasta gama de emoções que esse animal experimenta, como fica patente na análise dos apêndices anexos. UM ANIMAL QUE AMA Como se pode observar nos apêndices de 1 a 3, inúmeras são as passagens do Descent nas quais o cão figura como exemplo de animal portador das mais diversas e elevadas faculdades mentais, grande parte delas no nível das emoções mais elaboradas. Dentre essas últimas destaca-se o amor. Em primeiro lugar, junto com a simpatia, o sentimento amoroso propicia uma espécie de cimento social, capaz de conferir a consistência necessária à formação dos vínculos de compromisso mútuo: Every one must have noticed how miserable horses, dogs, sheep, &c., are when separated from their companions, and what strong mutual affection the two former kinds, at least, shew on their reunion. (DARWIN, 1998a [1871], p. 103) Mas não é apenas o distanciamento de seus iguais que afeta o cão de Darwin. A ausência de seu dono pode ter um efeito tão ou mais perturbador: It is curious to speculate on the feelings of a dog, who will rest peacefully for hours in a room with his master or any of the family, without the least notice being taken of him; but if left for a short time by himself, barks or howls dismally (DARWIN, 1998a [1871], p. 103). A sociabilidade do cão parece, enfim, estar, para Darwin, intimamente ligada ao afeto que ele nutre por seu dono: Animals of many kinds are social; we find even distinct species living together; for example, some American monkeys; and united flocks of rooks, jackdaws, and starlings. Man shews the 106 same feeling in his strong love for the dog, which the dog returns with interest (DARWIN, 1998a [1871], p. 103) Esse vínculo emocional entre cão e homem recebe grande destaque na análise que Darwin faz dos atributos mentais dos animais.No capítulo anterior pode-se ver um trecho no qual Darwin afirma que “o amor de um cão por seu dono é notório” (DARWIN, 1998a [1871], p. 71).44 Esse amor canino assemelha-se tanto ao humano, que inclui até mesmo os ciúmes entre seus ingredientes: Most of the more complex emotions are common to the higher animals and ourselves. Every one has seen how jealous a dog is of his master's affection, if lavished on any other creature; and I have observed the same fact with monkeys. This shews that animals not only love, but have desire to be loved (DARWIN, 1998a [1871], p. 72) Eis, então, um animal que não apenas dedica amor, mas igualmente apresenta demandas amorosas em relação ao seu dono. Tão forte é esse laço entre cão e homem, que pode colocar à prova até mesmo poderosas tendências instintivas, e até mesmo um amor muito mais arraigado no patrimônio hereditário da espécie, como é o caso do amor da mãe pelos seus filhotes: Of the various instincts and habits, some are much stronger than others; that is, some either give more pleasure in their performance, and more distress in their prevention, than others; or, which is probably quite as important, they are, through inheritance, more persistently followed, without exciting any special feeling of pleasure or pain. We are ourselves conscious that some habits are much more difficult to cure or change than others. Hence a struggle may often be observed in animals between different instincts, or between an instinct and some habitual disposition; as when a dog rushes after a hare, is rebuked, pauses, hesitates, pursues again, or returns ashamed to his master; or as between the love of a female dog for her young puppies and for her master, for she may be seen to slink away to them, as if half ashamed of not accompanying her master. (DARWIN, 1998a [1871], p. 110, itálicos meus) 44 Para ler a passagem completa, ver página 85. 107 Como se pode ver nesse trecho, o cão de Darwin apresenta um repertório quase tão vasto de estados mentais quanto aqueles experimentados pelo ser humano. Nesse vasto repertório inclui-se todo o espectro de estados afetivos reunidos sob a alcunha de amor. E de um amor tão intenso como esse que um cão dedica ao seu dono, o mínimo que se espera é que seja recíproco, tanto que Darwin condena como deplorável a atitude do homem que não valoriza ou retribui o afeto a ele dedicado por seu cão: In the agony of death a dog has been known to caress his master, and every one has heard of the dog suffering under vivisection, who licked the hand of the operator; this man, unless the operation was fully justified by an increase of our knowledge, or unless he had a heart of stone, must have felt remorse to the last hour of his life. (DARWIN, 1998a [1871] , p.. 71) Aqui chama a atenção a explicitação de uma visão ética de Darwin quanto ao relacionamento entre homem e animal. E o fato de que o apelo é feito a que se considere acima de tudo o aspecto emocional, o amor fiel e incondicional de um cão sacrificado por um homem que traiu suas expectativas afetivas, que não soube honrar sua devoção a ele. Aliás, ‘devoção’ não é uma palavra exagerada aqui, pois o próprio Darwin a utiliza mais adiante: The feeling of religious devotion is a highly complex one, consisting of love, complete submission to an exalted and mysterious superior, a strong sense of dependence, fear, reverence, gratitude, hope for the future, and perhaps other elements. No being could experience so complex an emotion until advanced in his intellectual and moral faculties to at least a moderately high level. Nevertheless, we see some distant approach to this state of mind in the deep love of a dog for his master, associated with complete submission, some fear, and perhaps other feelings. (…) Professor Braubach goes so far as to maintain that a dog looks on his master as on a god. (DARWIN, 1998a [1871], p. 98; itálicos meus) Então temos aqui o amor como um componente da devoção, que no animal humano assumirá dimensões mais elevadas e espirituais. Mas permanece sempre a continuidade mental. E se há alguma diferença entre o 108 sentimento amoroso que um cão experimenta e o amor de que os homens falam e o qual exaltam, essa diferença é, como em todas as demais faculdades mentais, uma diferença de grau, e não de tipo. OUTROS ANIMAIS Vimos ao longo desse capítulo que o cão de Darwin exemplifica de forma satisfatória a concepção desse autor sobre a mente animal. Embora o método espécime-tipo dispense critérios rigorosos na escolha da unidade de análise adotada, a escolha do cão me parece particularmente pertinente, dada a importância que esse animal ocupava no imaginário burguês da Inglaterra vitoriana. Mas muitos outros animais poderiam ter sido escolhidos como espécimes-tipo alternativos, e dentre os mais freqüentes nas construções desse animal darwiniano destacam-se os primatas não-humanos, como os macacos (monkeys) e os grandes antropóides (apes). Somente para exemplificar o uso desses animais como portadores de emoções e outras faculdades mentais, podemos observar o trecho abaixo, do capítulo III do Descent: The fact that the lower animals are excited by the same emotions as ourselves is so well established, that it will not be necessary to weary the reader by many details (…) Every one knows how liable animals are to furious rage, and how plainly they shew it. Many, and probably true, anecdotes have been published on the long-delayed and artful revenge of various animals. The accurate Rengger, and Brehm state that the American and African monkeys which they kept tame, certainly revenged themselves. Sir Andrew Smith, a zoologist whose scrupulous accuracy was known to many persons, told me the following story of which he was himself an eye-witness; at the Cape of Good Hope an officer had often plagued a certain baboon, and the animal, seeing him approaching one Sunday for parade, poured water into a hole and hastily made some thick mud, which he skilfully dashed over the officer as he passed by, to the amusement of many bystanders. For long afterwards the baboon rejoiced and triumphed whenever he saw his victim. (DARWIN, 1998a [1871], p. 70) 109 Nessa passagem podemos observar o vasto repertório de faculdades mentais sofisticadas presentes no babuíno, um primata social africano: a zombaria da qual é vítima provoca sua ira, e ele reage arquitetando uma vingança imediata contra o oficial que o ofendeu. Alcançando êxito em sua revanche, ao atingir seu algoz com a lama que inteligentemente produziu de improviso, esse macaco reverte o jogo de forças, e passa a “regozijar-se em triunfo” sempre que avista o adversário humano sobre quem obteve uma derrota pública. Inúmeras outras passagens poderiam ser citadas, nas quais primatas de várias espécies, ou mesmo vários outros tipos de animais são usados para demonstrar a continuidade mental entre os animais e o homem, mas um tal levantamento foge ao escopo e aos compromissos assumidos no presente trabalho. RESUMINDO Minha intenção nesse capítulo e nessa dissertação foi sublinhar, no discurso darwiniano sobre a continuidade mental, o aspecto da mente emocional como atributo compartilhado entre animais e humanos. Um dos argumentos em favor da importância dessa mente emocional na teoria darwiniana é o fato de que dentre as inúmeras faculdades mentais aqui estudadas, e que Darwin acreditava que o cão compartilhava com o homem, mais da metade das mesmas está incluída entre as emoções, segundo os critérios estabelecidos no capítulo anterior. Procurei arrolar exemplos da importância da posse de uma consciência individual e de uma subjetividade emocional no animal darwiniano, e focalizei 110 em mais detalhes uma emoção em particular: o amor. Dentre as inúmeras expressões e variedades desse sentimento, dei atenção especial ao amor que um cão é capaz de nutrir por seu dono, e que aparece em vários trechos dos dois capítulos estudados do Descent. Esse amor propicia um cimento para as relações entre indivíduos nas espécies sociais. Na forma de amor canino, é experimentado por cada cão individual com grande intensidade. É um amor incondicional, que se frustra mas não se esgota ante a não-reciprocidade. Um amor que deve ser levado em conta em considerações bioéticas. Um amor quase mitológico, que emerge com renovado vigor quando são evocadas as lembranças de prazeres antigos vividos ao lado do dono. Um amor devotado, que faz com que o homem tenha para seu cão o status de um deus. Chamo o leitor à reflexão sobre a riqueza da vida mental e, principalmente, emocional, desse cão de Darwin. Esse autor nos apresenta um animal que raciocina, que sonha, imaginativo e solidário. Um animal que detém uma individualidade mental e algum grau de auto-consciência. Além do amor, esse cão experimenta uma ampla gama de emoções. Sente orgulho e vergonha. Tem senso de humor. Sente ciúmes, entedia-se em situações pobres em estímulos, decepciona-se quando suas expectativas são frustradas Dá exemplos de coragem altruísta em defesa de seu dono. Espero, assim, ter conseguido demonstrar a inadequação das teses de Richards (1989) e de Ghiselin (1984) anteriormente expostas no início do presente capítulo. Estabelecendo a grande importância e freqüência com que Darwin recorre às emoções animais como argumentos favoráveis à tese da continuidade mental animal-homem creio ter refutado a posição de Richards de 111 considerar as emoções atributos secundários na teoria da mente em Charles Darwin. Com vários exemplos nos quais as emoções figuram, no cão de Darwin, como estados mentais subjetivos, penso haver também desarticulado as duas teses defendidas por Ghiselin (1984) e anteriormente enunciadas, a saber: 1) a noção de que Darwin não conferia importância às emoções enquanto estados mentais subjetivos, mas apenas como estados neurofisiológicos; 2) a idéia de que Darwin não defendia a existência de uma semelhança real entre as emoções vivenciadas pelos homens e aquelas experimentadas pelos animais enquanto experiências internas. Contrariando as teses sustentadas por Ghiselin, o cão de Darwin não é um animal bem comportado e ansioso por preencher os rigorosos requisitos de excelência científica de uma vindoura era pós-darwiniana. É, isso sim, um animal nascido e mergulhado na cultura vitoriana. Um animal civilizado e superior a seus primos selvagens. Um animal que realmente raciocina, delibera, imagina, brinca, sonha, sofre e ama, um animal realmente emocional. 112 CONCLUSÃO RESUMO DOS PROBLEMAS DISCUTIDOS E TESES DEFENDIDAS Ao longo das páginas dessa dissertação meu principal objetivo foi o de preencher uma lacuna. Essa lacuna dizia respeito ao status das emoções na teoria darwiniana da mente. Três teses em especial foram contestadas. A primeira delas, sustentada por Richards (1989), seria a de que na construção da teoria da mente em Charles Darwin as emoções desempenhariam um papel secundário, largamente inferior àquele desempenhado pelos três outros atributos mentais que Richards considera os mais importantes na concepção darwiniana da mente: o instinto, a razão e a moral. Procurei demonstrar que as emoções desempenham papel tão importante quanto essas três outras faculdades mentais na explanação de Charles Darwin sobre a mente animal e humana. E que, na verdade, esses quatro atributos mentais (a emoção já aqui incluída) estão todo o tempo interrelacionados e imbricados nas narrativas darwinianas sobre o comportamento e a mente animal e humana. Um exemplo bastante pertinente e significativo de como esses diferentes poderes mentais interagem e se entrelaçam foi apresentado no capítulo 2, quando da discussão da faculdade da simpatia, à qual Darwin atribui imensa importância ao longo do Descent e também do Expression. A segunda tese contestada foi aquela defendida por Ghiselin (1984), que afirma que as denominações comuns de várias emoções para animais e homens feitas por Darwin não implicam a crença desse autor em uma semelhança de estados mentais experimentados. Em outras palavras, Ghiselin sustenta que o fato de Darwin dizer, por exemplo, que um animal sente raiva não implicaria que o naturalista defendesse que esse animal experimenta a raiva como um estado mental subjetivo semelhante à raiva que nós, humanos, vivenciamos. Discordando de Ghiselin (1984), penso ter apresentado 113 passagens do Descent nas quais o cão, por exemplo, experimenta inúmeros estados emocionais de forma muito similar àquela vivida pelo homem. Outra tese presente em Ghiselin (1984) que procurei questionar foi a idéia de que em Darwin as emoções são processos meramente neurofisiológicos, epifenômenos, e não estados mentais subjetivos propriamente ditos. Acredito ter demonstrado que as emoções darwinianas não são meramente descrições físicas de diferentes expressões animais e humanas, mas, pelo contrário, são faculdades mentais encontradas em seres dotados de uma rica e complexa vida interior. Os equívocos que aponto em Richards (1989) e em Ghiselin (1984) não devem ser entendidos como críticas abrangentes à qualidade das obras desses autores aqui discutidas. Trata-se de dois competentes estudiosos do darwinismo, com obras e argumentos sólidos a respeito de muitas das teses que defendem. O erro desses autores é facilmente compreensível diante da amplitude temática de suas obras, pois a opção pela abrangência implica necessariamente um sacrifício da profundidade. Entretanto, é justamente o fato de tais equívocos ser encontradiços em obras de autores desse porte que sugere com mais ênfase que a importância das emoções enquanto estados mentais na obra de Darwin tem sido negligenciada, e precisa receber alguma luz e dedicação de futuras pesquisas historiográficas. Em outras palavras, as emoções darwinianas pedem estudos históricos de maior profundidade. O motivo desses enganos nas investigações a respeito do lugar das emoções na teoria darwiniana diz respeito, penso eu, a um problema de eixo. A fonte primária na qual a maioria dos autores que tenho encontrado (BURKHARDT, 1985; CORNELIUS, 2000; GHISELIN, 1984; GREGORY, 1987 114 ; RICHARDS, 1989) se apóia para discutir as emoções em Darwin é o Expression, e não o Descent. Por isso também procurei demonstrar no presente trabalho que o Expression é dedicado basicamente à discussão das expressões emocionais, e não das emoções enquanto experiências mentais propriamente ditas. É no Descent, e não no Expression, que as emoções enquanto estados subjetivos internos são realmente discutidas. Desa forma, qualquer estudo sobre o papel das emoções em Darwin que esteja centrado unicamente no Expression está fadado ao erro, à negligência do verdadeiro status desses atributos mentais na obra desse autor. De qualquer modo, quer o Expression seja (como afirma Browne, 1985) ou não uma obra secundária dentro do corpo de textos de Darwin, permanece o fato de que esse autor publicou um livro exclusiva e especificamente sobre a expresão das emoções. Como se não bastasse, essas duas obras - Descent e Expression - inspiraram e ainda hoje inspiram como influências paradigmáticas muitas das visões atuais sobre a origem e papel das emoções nos animais e no homem (CORNELIUS, 2000), como veremos na última seção. Meu foco, na discussão da importância das emoções na concepção darwiniana da mente, foi na direção da mente animal ou, mais precisamente, das emoções animais. Procurei apresentar ao leitor o animal darwiniano em sua grande complexidade emocional, e para isso, metodologicamente amparado pelo método espécime-tipo (HULL, 1985), elegi como unidade de análise o que chamei de cão de Darwin, ou seja, o cão conforme percebido e descrito por esse autor enquanto portador de atributos mentais. Vimos que esse cão emerge de matrizes culturais já bem estabelecidas durante o período moderno, nos valores atribuidos a esse animal pelas mentalidades aristocrática 115 e burguesa da Inglaterra do século XVIII. Acompanhamos esse cão nas alegrias e dores de suas caçadas e nas lembranças das mesmas em seus sonhos e memórias na velhice. Testemunhamos sua fidelidade e amor devocional ao dono, e nos deparamos até mesmo com uma dimensão mitológica, ao presenciar o reencontro entre Darwin e seu velho cão, no qual a dupla homem-animal parece repetir a experiência arquetípica de Ulisses ao ser reconhecido por seu cão Argos após o regresso de sua jornada mítica contada por Homero nos versos da Odisséia. Vimos, enfim, que esse cão de Darwin apresenta-se como um animal mentalmente complexo, e dotado de ampla e rica vida emocional. Em breves passagens pudemos, ainda, observar que muitos outros animais - com destaque para os primatas - são utilizados por Darwin como exemplos da continuidade mental entre animais e homens. Em suma, procurei apresentar nessa dissertação o animal darwiniano em sua dimensão emocional. Dos cinco componentes do corpus teórico darwiniano listados por Mayr, 1998 (evolução como fato; origem comum; gradualismo; especiação populacional e seleção natural), entendo que é a teoria da origem comum (common descent) a que mais diretamente se relaciona com o tema das emoções na obra de Darwin. Um dos motivos para isso é que Darwin atribuía a gênese das emoções e expressões emocionais muito mais à herança de hábitos adquiridos do que à ação da seleção natural (DARWIN, 1998a [1871] E 1998b [1872]; RICHARDS, 1989). Outro motivo para essa relação mais direta das emoções com a concepção de origem comum é que tanto no Descent quanto no Expression Darwin declara explicitamente sua intenção de enumerar e descrever as diversas emoções e expresões emocionais como argumentos 116 em defesa da tese da continuidade mental animais-homem. E a noção de continuidade mental diz respeito basicamente a uma ancestralidade em comum, não importa por meio de quais mecanismo evolutivos. Muito se tem discutido a respeito da apropriação ideológica da teoria darwinista da evolução para a legitimação de políticas e valores de exclusão social, como fica patente nos estudos a respeito do dito darwinismo social45. Embora Darwin não tenha sido um entusiasta de políticas de exclusão - como fica patente, por exemplo, em sua repulsa e condenação das práticas escravistas (BROWNE, 2003) - a perspectiva eurocêntrica dominante na era vitoriana permeia toda a sua obra, assim como a de seus principais aliados. Dentro dessa ótica a teoria darwiniana e o programa de pesquisa darwinista do século XIX podem talvez ser entendidos como conjuntos de teorias e teses que propõem ou, ao menos, justificam, de forma direta ou indireta, políticas laissez- faire de exclusão de minorias. Pautada na expressão “sobrevivência do mais apto”, cunhada por Herbert Spencer, essa concepção se apoiaria principalmente na teoria darwiniana da seleção natural, que enfatiza a competição entre organismos semelhantes. Mas se nos voltarmos para a defesa da continuidade mental entre animais e homens uma outra faceta do darwinismo se revela. Quando o foco e o eixo são deslocados da noção de seleção natural para a tese de origem comum o que vemos delinear-se é uma ênfase não nas diferenças entre espécies superiores e espécies inferiores, mas, pelo contrário, um foco nas semelhanças entre animais e homens. Resumida na famosa expressão “uma diferença de grau, e não de tipo”, essa perspectiva nos permite conceber o darwinismo como um projeto 45 A maioria dos estudiosos do darwinismo sustenta que o ‘darwinismo social’ foi obra de articulações não de Darwin, mas de autores e atores outros, dentre os quais destaca-se Herbert Spencer (Bowler, 1989; Mayr, 1998) 117 desantropocentrizante, se me permitem o neologismo. Um programa de pesquisa que, ao abalar tão profundamente a tese criacionista da singularidade mental humana, promove o destronamento do homem. E nesse sentido a argumentação de Darwin a respeito das emoções animais adquire grande importância, como mais um conjunto de faculdades corroboradoras da tese darwiniana da continuidade mental. Penso que essa preocupação desantropocentrizante permeia toda a obra do evolucionista Charles Darwin, ainda que não seja compartilhada por muitos de seus aliados, como vimos ser o caso de Alfred Wallace e Charles Lyell. Burkhardt (1985) afirma que um dos principais motivos pelos quais os historiadores do darwinismo teriam demorado tanto para voltar suas atenções aos problemas da mente e comportamento na obra de Darwin diz respeito ao fato de que muitas das concepções e métodos de Darwin para estudar esses temas são hoje considerados cientificamente obsoletos ou equivocados. Esse autor lista entre os pontos atualmente considerados fracos na abordagem de Darwin sobre esses assuntos: 1) a idéia de que muitas das faculdades mentais, dentre as quais as emoções, tinham sua gênese explicada por Darwin em termos de herança de hábitos adquiridos, tese hoje considerada derrotada; 2) o desmesurado uso, por Darwin, de relatos anedóticos colhidos de terceiros ou mesmo por observação direta do comportamento de animais em estado selvagem ou cativeiro, sem qualquer preocupação com um rigor metodológico. Esses relatos teriam recebido de Darwin interpretações demasiado antropocêntricas, inaceitáveis para os parâmetros atuais de rigor científico. Richards (1989) aponta o quanto há de preconceito whiggista nessa forma de encarar e julgar as concepções e construções de Darwin a respeito da mente, 118 uma vez que os métodos empregados por esse evolucionista eram perfeitamente compatíveis com o fazer científico de meados do século XIX. Podemos perceber nos argumentos de Ghiselin (1984) o vão esforço de um historiador que busca salvar Charles Darwin de um julgamento histórico- científico desfavorável. Penso, no entanto, que essa preocupação é infundada, não só pelos motivos levantados por Richards (1989) que acabo de mencionar, mas também porque na edificação de sua argumentação Darwin não parecia preocupado quanto a estar adotando ou não uma perspectiva antropomórfica. Ao contrário, sua atenção estava basicamente voltada, sustento eu, para o ataque pesado e incessante a uma postura antropocêntrica, então identificada com as teses de teor religioso sobre a origem do homem e seu lugar na ordem natural. Aqui, mais uma vez, as emoções animais se destacam como argumentos sólidos e contundentes em favor das teses darwinianas a respeito do continuum existente entre as mentes animal e humana. DARWINISMO E EMOÇÕES: DESDOBRAMENTOS POSTERIORES E BREVE PANORAMA ATUAL A compreensão do status das emoções animais na teoria da mente em Charles Darwin pode receber mais luz se observarmos alguns dos desdobramentos posteriores a respeito do tema. A idéia, aqui, não é julgar as teses de Darwin à luz do arcabouço conceitual atual sobre as emoções e a mente, mas sim acompanhar os rumos da mente animal e humana dentro do darwinismo, aqui entendido como uma entidade histórica, que sofre transformações ao longo do tempo, nos moldes propostos por Hull (1985). Também não pretendo traçar a trajetória histórica dessa discussão do século 119 XIX ao início do XXI, mas tão somente apresentar de forma breve algumas das questões hoje debatidas e das teses hoje defendidas quanto às emoções enquanto atributos mentais relavantes e quanto às emoções animais como tema de debates científicos e éticos. O tema das emoções esteve presente na discussão da vida mental em muitos programas de pesquisa no fim do século XIX e nas primeiras décadas do XX , mas foi sofrendo um progressivo desinteresse nas décadas seguintes. Mas a partir dos anos 1970 o problema das emoções retomou seu crescimento como foco de atenção, e a década de 1990 testemunhou uma ressurgência de pesquisas e teorias sobre as emoções (MORGAN, 1995). A questão das emoções constitui hoje um tema abrangente e de extrema relevância, e diferentes escolas com abordagens e concepções bem diversas têm se debruçado sobre esse tópico com grande afinco. Grande parte dessas abordagens têm raízes numa perspectiva darwinista. Biólogos investigam o valor adaptativo das expressões emocionais como mecanismos de comunicação e de motivação nas interações sociais, e a quais grupos animais seria legítimo atribuir emoções (FOUTS, 1998; GOODAL, 1991). É discutido se haveria “emoções básicas”, universais ao gênero humano ou se as emoções só existem enquanto construções sociais, particulares a cada cultura (EKMAN, 1994; PINKER, 2004). Neurocientistas estudam os estados emocionais como processos fisiológicos (LEDOUX, 2001), enquanto filósofos e psicólogos enfatizam a experiência interna, a questão do eu que vivencia as emoções (LACROIX,2001; NAGEL,1974). O texto do Expression inaugurou uma linha de pesquisa das expressões emocionais, encabeçada por autores como Paul Ekman, que investigam a 120 universalidade das expressões faciais relativas às assim chamadas ‘emoções básicas’, tais como: surpresa, repulsa, medo, raiva, tristeza e alegria (EKMAN, 1994). Aliás, esse autor assina o prefácio e o posfácio, além de comentar em notas a edição americana de 1998 do Expression (DARWIN, 1998b [1872]). No campo da ética uma nova disciplina, a zooética, tem se apoiado cada vez mais no conceito darwiniano de origem comum para travar debates engajados e traçar políticas agressivas de questionamento das formas de exploração das diferentes espécies animais pelo homem. E nessas discussões figura como um forte argumento a idéia de que os animais são dotados de vida interior e, portanto, são capazes de sentir não somente dores físicas, mas também emocionais (FOUTS, 1998; SINGER, 2002 e 2004). Ainda na dimensão ética, hoje há uma tendência a pautar os critérios de escolhas e ações morais não mais em julgamentos racionais, mas principlamente nas emoções evocadas pelos atos e valores em discussão, e vem crescendo o debate em torno das ditas ‘emoções morais’ (HAIDT, 2003). A teoria evolutiva de Darwin exerceu, ainda, grande influência sobre dois importantes autores dos séculos XIX e início do XX: William James (RICHARDS, 1989) e Sigmund Freud (RITVO, 1992a). Ambos, nomes de peso na história do pensamento psicológico. Ambos construindo boa parte de duas teorias com enfoque nas emoções. Além disso, uma das quatro grandes tradições teóricas no estudo atual das emoções é a perspectiva evolucionista, também chamada darwinista, e outra delas é a perspectiva jamesiana, baseada no psicologia de William James, que por sua vez baseou suas teorias diretamente na concepção darwinista então vigente46 (CORNELIUS, 2000). 46 As outras duas tradições teóricas seriam, segundo Cornelius, 2000, a cognitiva e a sócio- construtivista. Somente essa última opõe-se frontalmente em seus princípios e teses subjacentes à ótica darwinista das emoções. 121 Por constituir ponto de síntese e convergência de tantos temas e disciplinas hoje em debate, as emoções parecem, enfim, representar hoje um valioso ponto de pauta nos estudos da mente animal e humana. Por sua importância como faculdades mentais, como componentes da teoria darwiniana da moral, pela abundância de referências às mais diversas faculdades emocionais ao longo das duas obras de Darwin consultadas nessa dissertação, e também pelos desenvolvimentos subseqüentes que as concepções darwinianas sobre emoções tiveram, como influência de peso na formulação de teorias das emoções que vigoram ainda hoje, reafirmo, aqui, que as emoções animais são um tópico da maior importância na edificação de uma teoria darwiniana da mente, um material valioso e indispensável na construção de uma ponte suficientemente extensa e sólida para atravessar o imenso abismo científico e histórico que separava os grosseiros instintos animais da sublime alma humana. 122 REFERÊNCIAS REFERÊNCIAS ALLEN, DAVID ELLISTON - The naturalist in Britain - a social history. Suffolk: Penguin Books, 1978 BLUM, DEBORAH. The monkey wars. New York: Oxford University Press, 1994. BOWLER, PETER. 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[77]; Se realmente são perturbados pelos vagos contornos de objetos, “podem quase ser chamados de supersticiosos” [77] 19) Razão / Associação de Idéias: Estratégias de cães para marchar no gelo fino [77]; Habilidade em encontrar água, cavando [78]; Soluções deliberadas tomadas po um retriever para buscar patos alvejados pelo dono [80 ] Apêndice 1: Faculdades mentais (em negrito) atribuidas ao cão no cap. 3 do Descent, e os contextos nos quais as mesmas são listadas. Os números nos colchetes indicam as páginas correspondentes. As faculdades de números 1 a 15 estão sendo consideradas emoções, de acordo com os critérios especificados na página 67, do capítulo 2 128 APÊNDICE 2 Capacidade de auto-aperfeiçoamento: O cão progrediu em “certas qualidades morais”, quando comparado com o lobo e outros parentes selvagens. São exemplos dessas “qualidades”: afeição, confiabilidade (trust-worthiness), temperamento, inteligência geral. [83] Poder de Abstração / Formação de conceitos genéricos: Quando um cão vê outro à distância, este outro é percebido no abstrato [86] Auto-consciência: Um velho cão com excelente memória e algum poder de imaginação poderia “refletir sobre seus prazeres e dores passados” [86] Individualidade Mental: O mesmo cão acima, que reconheceu Darwin após uma ausência de 5 anos [86] Posse de Linguagem: A expressão de emoções - tais como avidez (eagerness); raiva (anger); desespero (despair); alegria (joy); demanda ou súplica (demand or supplication) - requer o domínio de uma linguagem. É o caso do uso de sons distintos para expressar esses diferentes estados [87]; O cão entende várias palavras e sentenças, o que indica que possui certa “inteligência vocal” [88 /92] Atribuição a objetos inanimados de vida animada por agentes espirituais: Seu cão rosnava quando o vento movia seu guarda-sol [98] Devoção: O profundo amor de um cão pelo dono assemelha-se ao sentimento de devoção religiosa [99] Apêndice 2: Contestação por Darwin de aforismos então comuns (em negrito) que tentavam estabelecer a singularidade mental humana e os contextos nos quais os mesmos são listados, no cap. 3 do Descent. Os números nos colchetes indicam as páginas correspondentes. Somente foram listados aqueles aforismos nos quais o cão figura como portador das faculdades mentais em questão. 129 APÊNDICE 3 1) Amor (love): Forte amor que o dono sente pelo cão, e este retribui [103] 2) Desterro (Miserableness): cães sentem-se desterrados quando separados de seus companheiros [103] 3) Melancolia (dismall): Quando o dono sai do quarto onde estavam juntos em silêncio, late ou uiva melancolicamente (dismally) [103] 4) Perplexidade (astonishment): Cães ficam perplexos ante um ataque feito por babuínos [104] 5) Sentimento terno (kind feeling): Um cão que era um grande amigo de um gato que estava adoentado e que, sempre que passava por este, lambia-o de maneira afetiva [105] 6 e 7) Simpatia (sympathy) / coragem (courage): Deve-se chamar de “simpatia” o que faz um cão corajoso atirar-se em qualquer um que agrida seu dono [106] 8) Consciência (conscience): Darwin concorda com Agassiz que os cães possuem algo muito semelhante a uma consciência [106] 9) Auto-controle (self-command): os cães possuem alguma capacidade de auto-controle, uma vez que refreiam-se de roubar comida na ausência do dono [106] 10) Satisfação, prazer X Insatisfação, desprazer: Cães de diferentes raças experimentam prazer em desempenhar certos atos instintivos e desprazer ao desempenhar outros, e os atos em questão variam de acordo com as tendências inatas de cada raça [107] 11) Força dos instintos herdados: Um jovem pointer não pode evitar apontar quando fareja a caça [108] 12) Luta entre dois instintos em conflito, ou ente um instinto e um hábito: Exemplos: quando um cão persegue uma lebre e depois retorna para seu mestre; confilto de uma cadela entre o amor por seu dono e aquele pelos seus filhotes [110] 13) Ódio (hatred): Capacidade que alguins cães têm de odiar prolongadamente homens ou cães estranhos, como se fossem seus inimigos [116, nota] Apêndice 3: Faculdades mentais atribuidas ao cão no cap. 4 do Descent, e os contextos nos quais as mesmas são listadas. Os números nos colchetes indicam as páginas correspondentes. Foram consideradas emoções as faculdades de números 1 a 7, além de duas emoções citadas no contexto da faculdade número 12. Os critérios adotados para classificação de um atributo mental como emoção estão explicitados na página 67, do capítulo 2. 130